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A voz do Smoke City, Nina Miranda volta para cantar as delícias de ser livre

Por
Rafael Bittencourt
Em
26 julho, 2017

Depois de estourar no fim dos anos 1990 com Smoke City – sua banda “meio bossa nova, meio trip-hop” –, passar por alguns projetos musicais e inúmeras parcerias, a cantora brasiliense radicada em Londres Nina Miranda lança seu primeiro álbum solo: uma ode à liberdade, para se lembrar do calor tropical em meio ao sisudo fog inglês.

No final dos anos 1990 a música “Underwater Love”, do Smoke City, primeira banda de Nina Miranda, foi um dos grandes hits da cena trip-hop europeia, encabeçada por Portishead, Thievery Corporation, Morcheeba e Massive Attack.

Com o fim de Smoke City, Nina criou o Shrift, banda de pegada ainda mais etérea e delirante e, em 2007, a Zeep, uma empreitada, digamos, mais “orgânica”. Paralelamente a tudo isso, fez diversas parcerias com Kassin e Domenico Lancelotti, Bebel Gilberto, Rodrigo Amarante,Basement Jaxx, Nação Zumbi, Moreno Veloso, Danilo Caymmi, Daniel Jobim, Seu Jorge, etc…

Agora, Nina sentiu que era hora de ser a chefe do próprio navio e foi se deliciar com uma viagem em águas desconhecidas. Inspirada pela constante surpresa das marés e pelo desejo da liberdade que habita no horizonte sem fronteiras dos navegantes, misturou suas origens brasileiras e britânicas em um jogo de palavras e ritmos tão sóbrios quanto catárticos e tão doces quanto dançantes.

Em “Freedom of Movement” Nina mergulha fundo em sua própria história, explorando as muitas nuances de seu trabalho para deixar claro que “world music” de verdade reverencia qualquer lugar da face da Terra.

Depois de tanto tempo trabalhando em bandas e com outros parceiros musicais, por que só agora você decidiu fazer um trabalho solo?
Depois que Smoke City acabou eu já queria fazer um disco solo. Tinha um empresário interessado e ele gostou muito de três músicas que eu fiz com o Shrift, minha segunda banda. Perguntei ao meu parceiro na época se poderia colocar as músicas no meu álbum solo, mas ele disse: ‘não, se você quer alguma coisa com essas músicas, você tem que fazer o disco inteiro comigo” (risos)… Eu percebi que se eu não fizesse o disco com ele, as músicas não sairiam. É isso que acaba acontecendo: você vai para outros caminhos quando quer agradar todo mundo. Mas em “Freedom of Movement” foi a primeira vez que eu pude fazer algo e dizer para mim mesma: “Agora sou eu! Agora eu sou a chefe do navio e esse navio vai para onde eu quero ir.”

O que trouxe esse sentimento de ser a chefe do navio?
Parar de fazer música um pouco e, depois, na gravação. A faixa “The Cage” é sobre uma epifania muito forte e é quase a irmã mais velha de Underwater Love (hit de Smoke City nos anos 1990), por que as duas vieram do mesmo lugar: querer escapar de Londres e do concreto. “Underwater Love” foi um sonho muito passional, sublime, um sonho de querer estar no Brasil, de querer ser cantora e o sonho de ser sereia, boto e atriz de novela (risos). Por outro lado, “The Cage” é querer estar livre. E eu vejo que não sou só eu que me sinto presa, todo mundo se sente preso! Eu vejo o artista como o porta-voz de muitas pessoas. Eu me vi como alguém que tinha que cantar para a mulher que está só com os olhos saindo da roupa, a criança que está indo para o colégio e está sofrendo bullying, o cara que tem um emprego que não gosta… Eram muitas camadas de gaiolas. “The Cage” também é o Jardim do Éden, o paraíso. Então, o sentimento era mostrar não só o que é difícil, mas também mostrar a beleza que a gente pode encontrar. Esse sentimento de luz no fim do túnel.


A presença do Brasil no seu trabalho é sempre muito forte. Houve alguma inspiração na hora de criar o “Freedom of Movement”?
Acho que música, mais que tudo, é minha maneira de estar no Brasil. Especialmente neste momento, que eu estou muito triste com tudo o que está acontecendo aí. Eu só fui pensando em Salvador nesse álbum e só tinha gente de Salvador chegando aqui para gravar.E eu acabei indo a Salvador e conheci o que eu queria do Brasil, que eu não tinha conhecido antes. Eu percebi que queria o Rio de Janeiro mais Salvador, mais afro-brasileiro. Sempre senti no Rio um separatismo muito grande, de classes e de raças. Salvador está tudo mais junto, há uma energia mais espontânea.

Como você chegou ao nome “Freedom of Movement”?
É a liberdade da liberdade da liberdade da liberdade! Eu vi muito isso no processo de fazer o disco. Por que criava as músicas e levava para alguém mixar, mas o cara não queria mixar, e sim produzir, dar palpite. Eu queria colocar uma harmonia aqui e ali, mas eu ouvia : “Não. Não funciona para esse tipo de música”. E eu rebatia: “Que tipo de música é? De quem é essa música?” Então eu percebi que se eu não puder estar livre na música, na arte, onde é que eu estaria? Se eu não posso estar livre no meu próprio disco, como é que eu vou falar que é meu? Então, “Freedom Of Movement” é sobre liberdade e sobre não parar a festa. Não ter regras de gêneros musicais, não ter regras de quem é homem ou mulher, quem é cantor ou percussionista. Na gravação eu até coloquei o percussionista no vocal e eu fui para percussão!

Você participou de todo o processo do álbum?
Acabei aprendendo todo o processo, por que comecei a sentir falta da liberdade. Eu via o percussionista, que eu adoro, entrar em transe quando tocava. Parecia que ele estava indo para um lugar muito além de onde ele estava ou já foi, e eu acompanhava, sentia aquilo! Era como uma cavalgada: o cara vai vislumbrando várias coisas, uma mulher, um oásis! Mas de repente vinha o engenheiro de som e parava a gravação no meio disso tudo. No fim das contas o processo criativo não se completa, ninguém chega no oásis. É que nem uma festa: o melhor da festa é quando todo mundo está na mesma vibração! E participando de todo o processo, eu deixei todos esses momentos lá, esse auge!

Ainda sobre a liberdade: a abertura da música “Play” tem uma citação que diz “Reverenciamos qualquer lugar da parte da Terra”. O álbum é sobre isso?
Yes! E quem fala isso é um homem indígena, o Wakay, da aldeia Thá-Fene, que eu conheci em Salvador e depois ele veio para cá. Isso que ele diz é lindo: que quer cuidar do povo da tribo dele, mas também dos outros povos, que nasceram no Canadá, na África, aqueles que estão sendo varridos de seus locais. São todos os povos! Eu também tenho esse sentimento. Minha emoção é de todos, meu amor é para todos.

Você diria que o cenário político do mundo impactou na criação?
O disco é totalmente livre e oposto de como o mundo está. Especialmente o meu país agora, o Reino Unido, que está sob o governo da direita e fala sobre os refugiados e imigrantes, que fizeram esse país, como se fossem sujeira. O país está fechando as portas para as pessoas que estão querendo fugir da morte. Além de serem cruéis na ação, também são cruéis na palavra. Então, tudo o que tento fazer é exatamente uma antítese disso.

O movimento contrário à repressão e dor, muitas vezes vem da arte, não é?
Sim. O lado ruim das coisas faz a arte ser linda. E isso é muito importante. O tropicalismo foi isso. A Elza Soares é uma mulher que sofreu tanto e faz a arte mais incrível do mundo. A gente precisa de artistas assim para trazer esse colorido divertido e inesperado para o mundo. Acho que a arte me permite ser porta-voz e acho que eu também tentei dar um colorido para um mundo tão cinza, que começa a cair nessa caretice global. É uma inspiração do “Sgt. Peppers” dos Beatles, que fez uma espécie de terapia global, mas especialmente na Inglaterra que era tão cinza na época. Eu não consigo imaginar a minha infância sem o “Sgt. Peppers”! (risos)

Seu disco é sobre liberdade, mas você também surpreende a cada faixa. Não há uma linearidade no conjunto, o que é ótimo! Como foi essa relação entre liberdade e surpresa, criativamente falando?
As surpresas no disco acontecem porque eu não gosto de saber o que vai acontecer. Se eu vejo um filme e eu já sei o final, não me dá prazer. Acho que na minha música, o ouvinte não sabe onde vai parar. Mas eu sempre dou um final feliz. Talvez isso seja clichê, mas eu quero sempre dar uma festinha no final, onde tudo fica bem. Você vai passar por uns túneis, mas sempre vê a luz.

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