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Uma expedição darwiniana pela Patagônia chilena

Por
Ricardo Moreno
Em
2 março, 2016

O avião se desloca em velocidade de cruzeiro e o céu está azul até onde a vista alcança. Sob os meus pés e da fotógrafa Fernanda Frazão, cerca de 10 mil metros abaixo, um cenário de cores e relevos surpreendentes. Com topos côncavos ou convexos, ora pontiagudo ora mais achatados, de alturas variadas mas sempre exibindo em seu cume a neve eterna e imutável presente mesmo no auge do verão, está a solene, poética e temida Cordilheira dos Andes.

©2013 Fernanda FrazãoFotos: Fernanda Frazão

O piloto do Airbus ziguezagueia até avistar, do outro lado do recorte geográfico, a planície onde pousaremos no despretensioso aeroporto de Balmaceda. A pequena cidade, no sudeste do Chile, quase na fronteira com a Argentina e cuja boa parte da população de 456 habitantes trabalha no próprio aeródromo, é a nossa primeira parada depois de Santiago. O voo até Balmaceda desde o aeroporto Comodoro Arturo Merino Benítez, na capital do país, leva duas horas.

Mas o périplo anda está no começo. Até o nosso destino final, na ilha onde fica o quimérico Puyuhuapi Lodge & Spa (pronuncia-se puiuapi), ao norte da Patagônia chilena, isolado de tudo e de todos, ainda faltam cinco horas que serão preenchidas com trajetos pelo asfalto, pela terra e pelo mar.

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Durante o caminho o turista irá se deparar com cidades que parecem saídas da filmografia dos irmãos Cohen e que durante o inverno se transformam em paisagens monocromáticas, com a neve encobrindo casas, ruas, praças, automóveis, tudo. E vez ou outra a estrada estreita-se para ceder espaço a paisagens complexas compostas de gigantes de pedra e gelo com seus incólumes glaciares lá no alto e caudalosos e violentos rios como o Simpson, de água verde-esmeralda e congelante temperatura de 5Cº.

Findo o percurso de 260 quilômetros pela Carretera Austral, a estrada que corta o Chile latitudinalmente, em trechos bem sinalizados de asfalto e outros sofríveis de terra batida e cascalho, ainda nos resta mais 20 minutos a bordo de uma lancha até a ilha, entre fiordes e estreitos canais que desembocam no Oceano Pacífico.

©2013 Fernanda Frazão

À medida que o barco evolui pela baía Dorita em direção ao resort, a civilização como atualmente a conhecemos – moderna, conectada e inquieta – fica para trás. O empreendimento, esparramado por uma área à beira-mar e construído em pedra e madeira nativa como o pinho e o lariço, conta com 30 suítes, todas com varanda privativa e vista para a baía e a cordilheira. O objetivo aqui é claríssimo: se desligar do resto do mundo e relaxar. Não há televisões, sinal de celular e conexão wifi, apenas um decrépito computador comunitário no saguão com uma internet que faz as paleolíticas conexões discadas de duas décadas atrás parecerem um foguete.

Acostume-se. Nas primeiras 24 horas (o ideal, para desfrutar de todos os programas e se desligar por completo, são três ou quatro dias) você ainda vai sentir falta do ícone de 4G brilhando na tela do seu smartphone e questionar as vantagens de se estar em um lugar tão especial se o Instagram não está disponível para compartilhar com o mundo as fotos que tirou. Logo passa. E você entenderá que a vida é um tanto melhor assim – inclusive o sono, que fica mais longo, tranquilo e reconfortante.

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Uma das principais atrações do complexo e programa predileto dos casais que se dispõem a pagar até R$ 1600 por noite (a tarifa mais barata é de cerca de R$ 500, dependendo da época do ano e dos serviços contratados, como refeições e bebidas alcoolicas) são as piscinas termais, cujas águas aquecidas pela falha geológica Liquiñe chegam à superfície terrestre a uma temperatura que varia dos 32Cº aos 39Cº. Dizem que têm propriedades terapêuticas, sendo recomendadas para tratar problemas na pele e reumáticos.

Em um bonito sobrado anexo, na área onde está localizado o spa, há uma piscina quente, outra morna destinada às crianças, uma fria para choque de temperatura e duas jacuzzi quentes com uma privilegiada vista da Cordilheira no horizonte. Do lado de fora, à beira mar, há outras três, sendo que uma delas está incrustada nas próprias pedras, no meio da floresta. São nelas que os hóspedes passam boa parte do tempo, de modo que é comum ver pessoas zanzando para lá e para cá, nas dependências do hotel, de roupão e chinelo.

©2013 Fernanda Frazão
©2013 Fernanda Frazão

Com exceção das piscinas, todos os outros serviços oferecidos no spa são cobrados à parte. E eles podem fazer um estrago no seu cartão de crédito. São quase trinta opções, tudo detalhadamente descrito em um cardápio que inclui massagens, tratamentos faciais e combos especiais como uma esfoliação que leva algas e outra com sal marítimo e azeite de oliva. Os preços variam entre R$ 125 (25 minutos de massagem relaxante, por exemplo) e R$ 315 (limpeza facial completa, entre outras opções).

Para quem prefere atividades outdoor, o hotel oferece a locação de caiaques e equipamentos de pesca. Nos arredores, a sugestão é fazer alguns dos passeios pelas trilhas sinalizadas, os chamados senderos. Eles duram entre 1 e 3 horas e são relativamente fáceis de serem percorridos mesmo para quem não está acostumado a práticas esportivas. E o mais recomendável é fazê-los na companhia de um dos guias turísticos especializados que ficam disposição no próprio resort.

©2013 Fernanda Frazão
©2013 Fernanda Frazão

Mas é fora da ilha que estão as visitas e vistas mais impressionantes. A 1 hora de carro, no mesmo caminho em que viemos, está o Bosque Encantado, localizado em um dos pontos mais altos da Carretera Austral, dentro do Parque Nacional Queulat. E como o próprio nome revela, uma profusão de plantas dos mais variados tamanhos, formatos e espécies, em impressionantes tons de verde, transformaessa caminhada de 2km selva adentro numa experiência idílica rumo a um lago convenientemente batizado de Lago dos Gnomos. Também dentro do Queulat, que ocupa uma área total 154 mil hectares, está o Sendero Mirador. Depois de uma caminhada leve de 3,3km, uma lagoa desvela-se no horizonte e, ao fundo, a vista do glaciar Ventisquero Colgante e sua dramática cascata de mais de 550 metros de altitude, uma das maiores do planeta. Dependendo da época do ano e das condições meteorológicas também é possível contratar uma lancha e navegar até poucos metros da queda.

©2013 Fernanda Frazão
©2013 Fernanda Frazão

Na direção oposta, a 16km a partir do pequeno porto de onde saem os barcos em direção ao lodge, está o vilarejo pesqueiro de Puyuhuapi, onde vivem pouco mais de 500 pessoas. Fundado por imigrantes alemães nos anos 1930, muitas de suas casas ainda remetem à arquitetura típica daquele país e seu estilo teutônico. Também vale uma visita à fábrica Alfombras de Puyuhuapi, fundada em 1945 e que até hoje produz tapetes 100% artesanais e que custam pequenas fortunas: o mais barato, de 70 cm x 1,30 m, sai por 440 dólares. O maior, que mede 3,05 m x 4 m, custa 5.870 dólares. Eles também podem ser feitos sob encomenda.

E no final do quarto dia, quando você começar o caminho de volta à civilização e perceber que o sinal do seu smartphone voltou, vai desligá-lo por mais algum tempo, desejando que essas 96 horas que acabou de viver se estendam por mais uma noite.

puyuhuapilodge.com


Eles trabalham enquanto você relaxa

©2013 Fernanda Frazão

Ada Díaz
32 anos, padeira

Há dez anos ela arrumou uma mala com algumas mudas de roupa e sapatos, e se mudou do vilarejo de Puyuhuapi, onde morava com a família, para viver e trabalhar nas dependências do lodge. Miúda, de sorriso largo, sempre maquiada e com suas inseparáveis lentes de contato verdes, Ada Díaz é a responsável por preparar os cerca de 120 pãezinhos que são servidos diariamente no café da manhã, almoço e jantar do hotel. Do seu forno também saem, em média, sete pães integrais, dez brancos e seis broas. Solteira e sem filhos, ela encontrou na equipe de 45 pessoas que trabalham no hotel alguns amigos para todas as horas. E nos três dias de folga que tem a cada doze de trabalho, Ada organiza a mochila e parte para Puyuhuapi, onde estão sua mãe e irmão. Mas é à noite, depois que todos estão dormindo, que ela faz o que mais gosta: pescar à beira da baía Dorita, longe dos olhos de todos, em silêncio absoluto.


©2013 Fernanda Frazão

Ramon Carcher
53 anos, gerente de operações

A história desse psicólogo de Santiago e a sua relação com o hotel poderia render uma novela. Chegou dezesseis anos atrás, contratado pela proprietária, Christine Kossmann, para ajudar a conter a rotatividade de funcionários. “O que essas pessoas vivem é um Big Brother da vida real”, diz. “Ficam confinadas, misturando vida real e profissional 24 horas por dias. Era preciso alguém para selecionar melhor os funcionários de modo que não pedissem demissão duas semanas depois”, lembra. Ramón Carcher também é um diletante da fauna e flora da região. Entre causos, lendas e explicações científicas, um passeio em sua companhia por alguns dos senderos rende mais do que muitas aulas de botânica e biologia. O final feliz ocorreu dez anos atrás, quando já havia terminado o trabalho de organizar a nova equipe do hotel: apaixonou-se por Christine, com quem está casado. Ele mesmo uma prova de que os compromissos ali dentro podem ser duradouros.


©2013 Fernanda Frazão

René Mancilla
75 anos, agricultor

Don René, como é conhecido, há quinze anos responde pelo cultivo das hortaliças do hotel. Usa o mesmo canivete na hora da colheita desde o dia em que chegou. “Foi um presente de boas vindas dado pelo Ramon”, conta. Antes, ganhava a vida com a pesca de merluza. Acelga, tomate, pepino, cibulete, cilantro, chicória, cenoura… Tudo é cultivado localmente, em um espaço de 8 por 20 metros, e sem uso de qualquer agrotóxico. Dono de uma saúde e ânimo invejáveis, a rotina de René Mancilla é um pouco diferente das dos demais funcionários. Ele vai e volta todos os dias de Puyuhuapi, onde vive na companhia da mulher. Os quatro filhos, já grandes e “encaminhados”, moram em várias parte do Chile. Em casa, construiu duas estufas nos fundos. “É para minha senhora se entreter enquanto eu estou fora”, diz.


©2013 Fernanda Frazão

Cinthia Olivares
23 anos, guia turística

Os dias em Puyuhuapi, para Cinthia Olivares, têm um gosto ainda mais especial. Trata-se do primeiro trabalho da sua vida. Estudante do curso de turismo em Santiago, ela mudou-se para a Patagônia para trabalhar no período de férias da faculdade, durante três meses. É uma das responsáveis por acompanhar os grupos de turistas nas caminhadas pelas trilhas, passeios de caiaque e pescaria. Tímida, ainda está aprendendo com os colegas mais experientes os truques e manhas da profissão. Mas o que não falta nela é vontade. “Quero voltar nas próximas férias. E, quem sabe, passar um período maior aqui aprendendo a história do lugar”.

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