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Cerâmica e pinturas rupestres entre as belezas da Serra da Capivara

Por
Paula Sacchetta
Em
17 julho, 2018

No sudeste do Piauí, o Parque Nacional da Serra da Capivara guarda a maior concentração de sítios arqueológicos das Américas. São registros feitos há mais de 10 mil anos e que também podem ser vistos em peças de cerâmicas vendidas por todo o país, da Tok Stok ao Pão de Açúcar.

Mesmo quem nunca visitou a Serra da Capivara é capaz de reconhecer os desenhos pré-históricos que retratam animais, cenas de caça, luta, dança e a vida cotidiana de nossos ancestrais. As pinturas rupestres pertencem aos paredões rochosos deste Parque Nacional no sudeste do Piauí, que guarda a maior concentração de sítios arqueológicos das Américas. Hoje, esses registros feitos há mais de 10 mil anos também podem ser vistos em peças de cerâmica vendidas por todo o país, de lojas como a Tok Stok aos supermercados Pão de Açúcar. Mas isso só foi possível graças a uma iniciativa pioneira que há duas décadas vem transformando a vida dos habitantes locais.

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No povoado de Barreirinho, uma das regiões mais pobres do país, nasceu o projeto Cerâmica da Serra da Capivara, que alia empreendedorismo, preservação ambiental e inclusão social. Essa história, no entanto, não é feita só de flores – e argila. Foi só em 1973, quando a arqueóloga Niède Guidon chegou à Serra da Capivara, que seu inestimável patrimônio arqueológico foi reconhecido como tal. De nome francês, mas brasileiríssima de Jaú (SP), ela travou uma árdua luta para transformar em Parque Nacional, seis anos depois, os mais de mil sítios com manifestações gráficas nas muralhas de pedra. Outros vestígios da presença do homem pré-histórico guardados ali datam de 60 mil anos e são os mais antigos identificados no continente americano.

As famílias que viviam na área decretada parque, no entanto, tiveram que deixar suas casas. Também não seria mais permitido caçar, plantar ou criar animais no território que hoje soma 135 mil hectares, acabando com o modo de vida da população. Os antigos moradores, que não possuíam documentação das terras que ocupavam, foram expulsos com parcas indenizações, calculadas com base em “benfeitorias”, ou seja, casas precárias, cercas de arame farpado e outras estruturas modestas que haviam construído para sobreviver no local.

O caminho dessas famílias foi o mesmo de tantos outros nordestinos expulsos pela fome e pela miséria. Trocaram o torrão de origem pela periferia das cidades mais próximas, como Coronel José Dias ou São Raimundo Nonato. Sem formação profissional, os agricultores não sabiam sobreviver longe da terra e do sustento gerado pela caça e terminaram migrando para São Paulo e Brasília em busca trabalho e melhores condições de vida. Em alguns meses, as famílias reduziram-se às mães e aos filhos menores que permaneceram.Pouco a pouco, essas mulheres foram contratadas para as atividades de conservação e preservação do patrimônio do Parque, assumindo as guaritas e os portões de entrada, por exemplo. Mas faltava fazer algo para trazer os pais e maridos de volta para casa.

Fotos: Paula Sacchetta

Foi então que a “Doutora”, como Niède é chamada, teve a ideia de transformar o artesanato regional em souvenir. Os mais de 25 mil turistas que passam por ali todos os anos queriam sair com alguma outra lembrança que não fossem só as camisetas com reproduções das inscrições dos homens das cavernas. Nas redondezas, vasos, pratos e potes já eram produzidos a partir da abundante argila da região e queimados em fornos a lenha, que era retirada justamente da área de preservação. Foi uma questão de unir as duas pontas. Para atender às comunidades locais e aos visitantes, Niède implantou uma pequena fábrica onde trabalhariam apenas homens produzindo a cerâmica com os desenhos de nossos ancestrais. “As imagens são representações do cotidiano das pessoas que habitavam a região. Reconhecemos cenas de dança, beijo e até sexo. Mas a maioria não sabemos explicar. Podemos especular e tentar entender, mas ninguém pode publicar um artigo dizendo o que eles representam de fato”, me disse Niède.

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De fato, hoje quem anda pelas linhas de produção, na visita guiada depois do passeio pelos cenários deslumbrantes do Parque, repara que somente homens transitam entre os fornos e a matéria-prima. Se no início eles não passavam de quatro, hoje somam nada menos do que quarenta. Assim, entre os homens que trabalham na fábrica e as mulheres que atendem na loja e desempenham outras funções administrativas, mais de sessenta famílias vivem da cerâmica, que existe desde 1994.

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Antes vendidos apenas aos turistas em visita ao Parque e nas feiras regionais, os produtos ganharam as lojas pelo Brasil, sendo exportados até para a Europa. À época da criação do projeto, Niède, hoje também presidente da Fundação Museu do Homem Americano, chamou um ceramista japonês para dar aulas aos artesãos. Um outro, de origem italiana, ensinou as técnicas da pintura esmaltada. Em cada peça são reproduzidas, a partir de um livro, as imagens dos homens das cavernas em baixo relevo. Tudo isso em fornos aquecidos a gás, diminuindo a extração de madeira do entorno, e com argila coletada dos espaços próximos – atividade muito menos nociva ao meio ambiente do que a caça e a extração de cal, práticas comuns nas imediações antes da sua criação do Parque. Seu Nivaldo, de 85 anos, foi o primeiro guia de Niède Guidon e é o funcionário mais antigo da fábrica de cerâmica. Lembra das dificuldades que passava com o pai antes de ter emprego no local. Era seringueiro e andava pela Caatinga atrás das árvores de maniçoba, que furava para extrair a borracha. Durante as chuvas, se abrigava nas cavernas e via os desenhos, que o pai dizia terem sido feitos por caçadores. Diz que o japonês que veio ensinar a técnica chamava Yamada e que o que ele ensinava parecia “muito, muito difícil”, mas que aos poucos foi pegando o jeito: “eu errava, desmanchava e começava tudo de novo, até o dia que eu consegui mesmo”.

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Hoje, o projeto da Cerâmica da Serra da Capivara produz mais de 12 mil peças por ano, contribuindo para desenvolver a economia local, dando sustento a diversas famílias em uma das áreas mais carentes do país, enquanto ajuda a difundir a arte pré-histórica pelo Brasil e pelo mundo. Como define Girleide Oliveira, à frente da administração da fábrica desde o começo dos anos 2000, a cerâmica é um produto que alia o passado dos homens pré-históricos ao presente da comunidade. “Não foi uma trajetória fácil e simples, tivemos altos e baixos, mas chegamos longe. Surgiu mesmo pra gerar renda para as pessoas que moram na região, pensando ao mesmo tempo em cuidar da fauna e da flora do entorno do Parque e divulgando as pinturas rupestres, que são nosso maior patrimônio”, diz ela.


Visite a região

O Parque Nacional da Serra da Capivara fica no sudeste do Piauí, a 534 quilômetros de Teresina, capital do Estado. A melhor maneira de chegar lá é pegar um voo até Petrolina, em Pernambuco, a 300 quilômetros do Parque. De lá é possível pegar um ônibus, mas a viagem é longa e cansativa. O mais indicado é alugar um carro, imprescindível para o deslocamento dentro do Parque. Não é permitido entrar sem guia e a diária de um deles custa 120 reais.

Apesar de ser a maior cidade próxima, São Raimundo Nonato não conta com boa infraestrutura para o turista. A dica é pousar no Albergue da Serra da Capivara, em Barreirinho, zona rural de Coronel José Dias, instalado no mesmo terreno da fábrica de cerâmica. Fica muito perto do Parque, os quartos são limpos e arrumados e a comida caseira é deliciosa. O café da manhã está incluso e é possível almoçar e jantar lá, pagando-se à parte, depois de desbravar a região. Girleide, que toca o lugar, pode ajudar com dicas de passeios e indicações de guias. Seu irmão, Marcos, responsável pela fábrica, faz visitas guiadas para mostrar o processo de transformação da argila em um belo vaso colorido. Tel.: (89) 3582-1760

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