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A vida depois dos 60: as constantes viagens — para fora e para dentro de si mesmo — do arquiteto e surfista Carlos Motta

Por
Lilian Kaori Hamatsu
Em
29 abril, 2020
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Num momento em que todos devem evitar sair de casa — principalmente aqueles com mais de 60 anos — por conta da pandemia de Covid-19, conversamos com 4 personagens que já passaram a casa das seis décadas para nos dar a receita de como manter uma alma solar. Nesta semana, o arquiteto, marceneiro e surfista, não necessariamente nesta ordem, Carlos Motta. “Já fiz ensaios infinitos pra sair de São Paulo e é exatamente aqui onde estou. Só agora mais velho e sábio percebo que não preciso sair de vez”

Nas ladeiras da Vila Madalena, o mais boêmio entre os bairros paulistanos, é possível encontrar Carlos Motta percorrendo em uma bicicleta os 5 quilômetros diários que separam sua casa de seu ateliê. Do garoto disléxico com “cacoetes de louquinho” por ser forçado a escrever com a mão direita durante a infância (ele é canhoto) ao jovem arquiteto hippie dos anos 70, que era adepto a uma alimentação macrobiótica e fazia o próprio xampu com babosa e iogurte enquanto o pai, publicitário, vendia campanhas de margarina e produtos de higiene pessoal, o designer evoluiu com a paisagem ao seu redor. “Já morei em cidades fora do país, tenho amigos que chegam pra cá e levam um susto. Como é que esse lugar tão feio, sujo, cruel, interessante, culto e ignorante é tudo ao mesmo tempo, aqui e agora? Eu sempre tive uma tendência naturalista, gosto da vida lá fora, já fiz ensaios infinitos pra sair daqui e é exatamente aqui onde estou. Só agora mais velhinho e mais sábio percebo que não preciso sair de vez. Viajo em temporadas de surf, de trabalho, a lazer, mas pra cá eu volto porque tem um lado afetivo”, conta.

Em paralelo ao surf, Carlos tentou cursar direito e publicidade antes de encontrar sua verdadeira vocação na arquitetura. Ainda na faculdade, foi inspirado a desenvolver projetos com madeiras e pedras que trazia de suas descidas ao litoral. O hábito de utilizar esse tipo de matéria-prima prevalece até hoje: “a madeira é uma das nossas primeiras descobertas como humanidade e já está exaurida, quase extinta. Tudo o que você vê no meu ateliê é reutilizado, trazido da região mais próxima, com menor impacto e rastro de carbono possível. Isso é design, marcenaria, respeito pela vida”.

Embora não se considere intelectual, do tipo que frequenta museus e teatros, Carlos absorve cada aspecto cultural de São Paulo por “osmose”, ao conviver com seus habitantes e observar a relação que os mesmos mantêm com a paisagem. “Não dá pra ter tédio, ser blasé, quando o aprendizado bate o tempo todo na nossa cara, nos nossos ouvidos e olhos. Minha meta é absorver o máximo de conhecimento possível pra ficar cada vez mais entregue, relaxado, olhando a sociedade e o mundo, a natureza, o cosmos e o universo com doçura”.

Antes da pandemia, no final de 2019, Carlos fez uma viagem com a esposa, Sibila, para Portugal e Marrocos, bem do jeito que gosta: free soul e repleto de experiências outdoor. “Caminhamos pelas montanhas dos Atlas, subimos 14 quilômetros e chegamos lá em cima ‘um lixo’ de cansados, dormimos na casa dos berberes, de uma simplicidade absurda, onde o banheiro é um buraco. Foi tão legal estar nessa atmosfera de novo, na idade que estamos e em comparação com o ambiente totalmente confortável que temos aqui na cidade”, conta. “Quase não aguentamos, mas foi tão lindo e a volta para Marrakech, cercados por pessoas falando uma língua que a gente não entendia, comendo coisas inéditas na vida, foi realmente especial. Já em Portugal, olhando a Península Ibérica, pensando no legado que celtas, romanos e mouros deixaram por ali, foi muito enriquecedor e confirma o jeito redundante do ser humano. As atitudes são hoje as mesmas que no passado. Conquistamos muito, mas ainda somos pecadores, navegadores, guerreiros. Essa viagem foi sobre perceber tudo isso e ficar sossegado.

Aos 67: proatividade, respeito ao tempo e outros aprendizados

Toda quinta-feira, por volta do meio-dia, Carlos dirige rumo ao litoral norte ou até a Serra da Mantiqueira, onde possui uma fazenda. Na praia, além de surfar, joga raquetinha e aprecia o movimento do mar. Já no silêncio absoluto do seu pedacinho de Mata Atlântica, prefere curtir momentos de introspecção e relaxamento. “Quando saio, nunca abandono o trabalho e continuo sendo pai, marido, marceneiro e designer. É o tempo todo, tudo, agora”.

Metódico, o arquiteto dispensa o uso de relógios, mas garante: é pontual e não se importa com a imprevisibilidade da vida. “Hoje, na hora do almoço, apareceram três filhos (ele é pai de quatro: Layla, Max, Diego e Gregório) e dois netos. Nem tinha comida pra todos, o pessoal estava comendo banana pra completar. Um tinha que ir pra natação, outro pra uma reunião, outro ia fotografar, mas foi uma hora e meia pra dar risada, falar alto, ser em conjunto e depois cada um pro seu canto. Apesar de tudo que é metódico na minha vida, vejo isso com naturalidade”, conta.

Carlos Motta e a esposa, Sibila | Fotos: arquivo pessoal

Aos 67, Carlos Motta segue comendo arroz integral, praticando ioga, religiosamente surfando nos finais de semana e cortando — ou não — os cabelos como bem entende. Em retrospectiva, garante que o tempo é muito lento, mas que já presenciou significativas mudanças desde que viu o mundo pela primeira vez: “a gente começa a achar que “nossa, já tô com essa idade e não acontece nada”. Essa peroba aqui na nossa frente deve ter no mínimo uns 300 anos, pedras que vejo lá em São Francisco Xavier tem bilhões. O tempo geológico é absurdamente lento, a mutação da sociedade até que é rápida. Desde que eu nasci, já tivemos o feminismo, a contracultura, a causa LGBT e a ascensão de religiões não-dominantes. Acredito que a sociedade vem trabalhando para uma libertação. Ouvi pela primeira vez a palavra ecologia em 1970 e olha o que aconteceu: uma criança de quatro anos aprende isso hoje na escola. O ser humano é o único animal histórico e vem aprendendo de geração em geração pelo conhecimento de quem veio antes”.

E o que tempo significa para você, Carlos? “O tempo é a maior incógnita de todas. Acabei de te falar um monte de coisas e já é passado, já foi e o vento levou. Me lembro que quando era pequeno perguntei ao meu pai: ‘quando começou o mundo?’. Ele ficou tentando me contar a história e eu respondi: ‘ah, então o começo foi aqui’. E ele disse: ‘tá, mas antes do começo tinha o quê?'”, lembra. “Na frente do retângulo branco, formado pelo projetor de slides na parede de casa, passou uma borboletinha e fez sombra. Meu pai disse: isso aí é a vida. Ela saiu do nada, existiu e voltou pro nada.”

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