Até o que não faz sentido, a faz sentir. E muito. E tanto que o coração lhe sai pela boca – em rimas ou em risos, porque o que Marcella Fogaça não transforma em música, transforma em piada. Aos 30 anos, a mulher que sobe ao palco é um mix original do lado A e lado B da vida que escolheu para si – aquela que começou sete anos atrás, com o grito de independência às margens plácidas da Lagoa Rodrigo de Feitas, quando a mineira cantou sua canção do exílio ao deixar sua Belo Horizonte natal pelos braços do Cristo Redentor. Na Cidade Maravilhosa, Marcella ganhou o título de musa do Carnaval e, embora seja constantemente flagrada desfilando o corpo e o violão pela areias e pelo sol da Zona Sul, mostrando seu lado mais solar, a artista é também a causa de insônia: seus shows no cair da noite faz muita gente perder a hora de dormir. Mas não há cansaço que deixe cadeiras vazias diante da performance da moça – é que o canto da sereia não é um chamado nem um convite, é uma ordem. Manda quem pode, obedece quem tem ouvidos!
Muita gente é bastante crítica ao atual momento da MPB, reverenciando apenas grandes nomes de outras gerações. Você se sente atacada por comentários que subestimam a nova safra da música brasileira ou entende que é ignorância?
Acho que toda crítica tem que ser avaliada com sabedoria; é preciso saber interpretar cada ponto levantado. A cultura de massa, a música que chega até a massa, é uma coisa mais voltada para o entretenimento, não para a emoção. O espaço é pouco para a outra vertente da MPB, a da poesia. Aliás, essa nomenclatura é outra coisa difícil de usar. Porque o sertanejo é pop, o funk é pop… As pessoas me pergunta qual o meu estilo e é complexo responder. Mas, no final das contas, acho que tem espaço pra todo mundo e tem muita gente boa por aí. Agora, voltando às críticas: isso não me afeta. Já recebi críticas que me fizeram crescer e às quais serei eternamente grata – muito embora o objetivo dessas críticas não fosse me fazer evoluir. Enfim, as críticas que me são úteis eu aplico no trabalho, e as que não são, eu simplesmente descarto.
Você já cogitou mudar seu trabalho para tentar emplacar nessa parte mais comercial do mercado fonográfico?
Já recebi oferta boa para ser cantora de axé e sertanejo. Eu componho em muitos estilos. Tenho funks e já mandei sertanejo pro Luan Santana. Eu componho sem querer… Às vezes eu tô escrevendo uma letra e vejo que ela caiu para um lado popular e eu me deixo levar. Claro que tudo isso dentro da minha essência, com o meu discurso, nada fora de mim. Mas aí eu não me arrisco a gravar, porque é como se eu não fizesse pra mim. É como se fosse uma outra vertente do meu trabalho. Já fiz um samba que mandei pro Zeca Pagodinho também. Já fiz música com o Antonio Villeroy, que compõe muita música pra Ana (Carolina). A gente brinca, sabe? Brinca de contar história. E essas histórias, às vezes, não é pra gente, é pra outro artista.
E você não tem ciúmes das letras? Não se incomode que uma música sua faça sucesso na voz de outro artista?
Olha, não vou dar nome aos bois, mas eu estive numa situação em que estava prestes a lançar uma música e um artista queria gravar justo aquela canção! Não topei. Poxa, justo essa? Eu optei por lançar eu mesma aquela faixa, mas deixei a porta aberta para regravação. É como se fosse um compartimento, sabe? Tem a Marcella cantora, a compositora para ela, aquela que faz músicas mais íntimas, a partir de uma experiência muito pessoal, e essa compositora mais solta… Um filme me inspira a fazer uma música, e eu faço uma canção que casa com ele. Aí pode sair um samba, uma coisa bem pop teen, sei lá. É um outro lugar, sabe? As músicas que saem desse outro lugar, que não é tão intimo, eu não teria esse apego. Mas eu não sei como seria se alguém regravasse uma música muito íntima minha. Porque às vezes as pessoas nem sabem o quão íntima ela é. Mas também não tô podendo ter ciúmes, não! Pô, se chega algum grande artista, de qualquer gênero – porque todo mundo tem seu mérito –, interessado em gravar uma canção minha, eu vou ficar muito feliz. É um reconhecimento, um elogio!
Já pensou uma Marisa Monte interessada nas suas músicas?
Aí eu tenho um enfarte, linda. A última vez que encontrei a Marisa eu até gaguejei. Me sinto uma criança 12 anos! Fomos apresentada por uma amiga em comum, e eu acho uma generosidade enorme ela lembrar de mim. Se bem que tem gente que tem uma memória privilegiada. Coisa que eu não tenho, tô tentando melhorar! (risos)
Bom, mas ela não dá pra esquecer…
Eu sou muito fã da Marisa. E olha que o termo “fã” é forte. Sou admiradora de uma dezena de artistas, mas fã de poucos – e a Marisa é uma das quais sou fã mesmo.
Você compõe em inglês e português. Como é sua relação com a língua?
Falo muito bem inglês, mas nunca vivi fora, nunca tive uma relação íntima com o inglês, apesar de dominá-lo. Acho que se eu tivesse a experiência de passar uns anos em um país de língua inglesa, vivendo em outro idioma, eu talvez conseguisse estabelecer uma conexão mais próxima. Temos palavras e maneiras de se expressar que não existem em outras línguas. Saudade, gente, como é que se traduz isso? Apesar de tudo, tenho duas músicas em inglês que são bem íntimas, mas foram escritas em outro idioma porque a melodia me levou pra esse lado. Tive mais dificuldade em escrever essas faixas em inglês – até porque o português tá aqui do lado, tá impregnado na história.
Se bem que música é uma língua universal, não acha?
Nas plataformas digitais de música é surpreendente ver que a maioria dos meus fãs vêm da Europa, sobretudo da França e dos EUA. A procura estrangeira é muito maior que a procura por aqui. Ainda este ano quero planejar uma turnê no exterior.
Acha que o sucesso lá fora talvez esteja ligado ao nosso ziriguidum?
Temos um calor diferente. É uma coisa latina, mas mais suave. Uma delicadeza no sofrimento. Nossa música tem muita poesia e não é chata. Tem muito carinho nas nossas trilhas sonoras, até porque o brasileiro é muito solidário. Acho que somos um povo muito imaturo, e ainda temos muito para aprender. Como toda criança, temos a alegria latente. Mas temos muito pra crescer. Não sei se a gente ainda vai ter que sofrer muito e endurecer. Tomara que não; tomara que consigamos crescer sem endurecer.
E por falar em crescer e aparecer, acha que a beleza a ajudou nesse processo?
Ah, isso é uma faca de dois “legumes”! (risos) A beleza me abriu sim portas, porque isso conta na nossa sociedade, mas ela me desafia a ter que me provar mais. Todo mundo sempre quer saber se eu sou só um rostinho bonito. É um desafio grande e, às vezes, bastante chato. Hoje em dia eu tenho maturidade para usar isso ao meu favor, sem passar por cima do meu conforto, inclusive emocional. No começo foi incômodo. Cheguei a ir para lugares mal arrumada: uma roupa mais ou menos, cabelo um pouco bagunçado, óculos… tentando fazer uma linha mais cult. Hoje em dia eu já me sinto segura para estar inteira. Me sinto completa no palco, segura de ser quem eu sou. Já não me importo muito com o que os outros vão pensar.
E você coloca todas as suas dores e delícias na música? É do tipo de artista transparente até no palco?
Não sei te responder. Não sou muito aberta em relação aos meus sentimentos. Eu busco o autoconhecimento. Estudo e medito bastante para tentar chegar ao equilíbrio, e descobri que um dos meus caminho até lá é escrevendo. Então esse processo deixa minha música muito visceral e real. Mas isso num primeiro momento, porque, para trabalhar a métrica da melodia, às vezes é preciso mexer um pouco na letra.
Tanto a música como o cinema são mercados superestimados. As pessoas glamorizam o setor e se decepcionam com a realidade. Você teve alguma frustração com o mercado fonográfico?
Várias, mas não em termo de podridão. A gente, quando está começando, sempre acha que é mais fácil, que com a gente vai ser diferente. Quando mais jovem, temos muita expectativa e com isso vem muita decepção. Mas não culpo o mercado o fonog… ah, já tive sim! Mas não foi com o mercado em si. Recebi uma falsa promessa quando morava em Minas. Um rapaz do Rio me cobrou uma grana para fazer um clipe, me colocar no Multishow e em outros lugares de destaque. Prometeu milagres e eu acreditei. Apostei alto na palavra do cara. Ele me entregou um clipe horroroso. Tanto que eu já até apaguei, nem tenho mais! Tinha 20 anos, fui uma grana suada, precisei da ajuda do meu pai. Foi um golpe mesmo. Isso não me fez pensar em desistir, mas me baqueou: fiquei um ano sem cantar. Eu era muito nova, e isso não abalou a minha relação com a música, mas a minha relação com as pessoas. Foi um MBA caríssimo.
Mas você acha que só talento é suficiente?
Conheço gente muito talentosa que há anos está na luta e outras que já desistiram. Mas aí é a história de cada um. Eu acredito que tem que trabalhar duro, mas duro de verdade, com toda garra, e ter talento. Acredito na sorte, em fazer o bem, em manter o coração aberto.
Você teve sorte até agora?
Acho que tive Deus muito presente no meu caminho. Tive momentos de sorte, mas acredito que vou ter mais.
Tenho a impressão que ter bons contatos no Rio é meio caminho andado para o sucesso…
Acho que é assim em qualquer lugar do mundo. O Rio é bem bairrista: as pessoas acabam se encontrando e formando suas tribos muito baseadas pelo bairro. Mas acho que isso não é uma exclusividade do Rio.
Você não acha que o Rio é muito do Q.I., do “quem indica”?
Sim, mas também acho que ninguém vai fazer nada por você. Não é porque você está no meio de famosos que alguém vai colocar a sua música na novela… não tem disso. Eu não faço nada por interesse – até porque, se fizesse, já tava rica! (risos) Sabe, eu caí sem querer num grupo de formadores de opinião. Isso talvez seja sorte – ou mérito? Sei lá, cada um é responsável pelo que mantém e pelas portas que abrem. Eu só me relaciono com pessoas que têm a ver comigo. Obviamente lobby social faz parte do jogo, como em qualquer trabalho, mas eu só chamo de amigo e trago para dentro de casa e da vida quem eu gosto de verdade, e se eu tiver que perder oportunidades por isso, bem, então eu vou perder.
Você acha que essa lealdade desmedida é o que você traz de mais mineiro dentro de você?
Pior que eu acho que é, cara. (pausa para pensar) Mineiro é muito educado; é um povo de grande sensibilidade, que sabe sentir o lugar, o momento e as pessoas. Mineiro é generoso demais. Nem eu sabia disso, to pensando nessas coisas agora! (risos)
Em diversas entrevistas, inclusive, você disse que não planejava mudar-se para o Rio, que foi algo aconteceu meio que “do nada”. Em que momento tomou essa decisão?
Acho que não teve um instante específico, foi uma soma de coisas. Em 2009 vim ao Rio para passar uma semana e acompanhar a abertura do Teatro Tom Jobim, que tinha um amigo da família envolvido no projeto. Acabei vivenciando uma imersão cultural, indo à peças, shows e festas incríveis. Foi uma semana muito rica cultural e socialmente, porque eu conheci muita gente inspiradora – e tudo isso me fez querer ficar.
A mudança, então, pegou a família de surpresa…
Pegou de surpresa geral. Eu vim sem a intenção de mudar. Achei que nem teria a coragem de fazer isso tão cedo, aos 23 anos. E a mudança não foi só de estado, foi de vida, porque eu saí da casa dos meus pais para morar sozinha.
E como foi isso?
Foi bem difícil… Difícil não, porque muita gente me cuidou aqui no Rio. Eu morei em doze lugares diferentes desde que cheguei. Hoje em dia, se você pede pra eu arrumar a mala, eu choro, tô com trauma. Me mudei muito, porque eu não tinha planos. Fui ficando, sabe? Morei na casa de uns tios-avós e depois aluguei apartamento com amigas… Fui me adequando à minha realidade e abraçando as oportunidades que surgiam. No apartamento em que moro hoje, estou há dois anos, um recorde.
Embora tenha vindo ao Rio sete anos atrás, o sucesso chegou de vez faz uns três, quatro anos. Como avaliaria seu processo, desde 2009? Foi uma luta difícil ou suave?
Luta fácil é treino de funcional, acho que não existe! (risos) É difícil, mas tampouco acho que seja uma luta – trata-se de um exercício diário de busca. Eu era muito nova e, como tal, tinha pressa. De qualquer forma, sempre procurei não criar expectativas, então tento fazer tudo o que está ao meu alcance no momento, com muito carinho e dedicação. E esperança, claro, porque isso eu tenho de sobra. Mas expectativa é outro bicho. Que a gente cria e dá o bote. Foi difícil abrir caminho, não conhecia ninguém… Mas foi divertido também.
E você já se sente segura e estabelecida?
Ainda tenho um caminho a percorrer. Quero ir mais longe: que meu trabalho seja cada vez mais conhecido e reconhecido. Eu amo o que faço e faço por mim, mas óbvio que, como cantora e compositora, estaria mentindo se dissesse que não espero que as pessoas conheçam o meu trabalho.
Você ainda vai muito a Belo Horizonte?
Eu sou meio telefone sem fio, sabe como é? Quando fico muito tempo longe da base, perco as energias. Vez ou outra preciso voltar e carregar tudo de novo! Preciso estar perto da minha família e meus amigos mais antigos. Lá eu descanso das pressões da vida e olho pra dentro de mim. Gente, isso dá uma música sertaneja! (risos)
Ainda que tenhamos tantos artistas talentosos, tenho a impressão que a rádio toca sempre os mesmos nomes, com músicas que nem sempre mostram todo o nosso potencial. Você acha que as rádios tocam essas canções porque é o que o povo quer escutar, ou que o povo que escutar essas músicas porque é tudo o que eles conhecem pelas rádios?
Já queimei a cabeça com amigos de produtoras tentando matar essa xarada. Minha opinião é que, com a abertura de crédito e a internet, a classe C e D se tornou uma consumidora potencial e sua cultura chegou até a elite. Isso, pra mim, ficou mais latente na época da novela Avenida Brasil, que popularizou essas misturas. Mas acho que a coisa saiu do controle, porque não precisa ser só isso. Sei que precisamos agradar o consumidor, mas acho que devemos a eles mais opções também. A gente tem que alimentar o povo com outras músicas também, que estimule a educação, a poesia, o sentimento. Mas aí você fala com as gravadoras e é aquela história do “linda, vai pagar quanto pra fomentar todo esse discurso bonito?” Mas isso vai se saturar em algum momento. A internet é uma puta ferramenta para que outros artistas e outros nichos ganhem mais força. É isso ou só rezando mesmo, que tá difícil! (risos)
E você curte seguir esse caminho de artista independente?
Nunca busquei de fato me apoiar em gravadora, porque, para entrar pra um selo, tem que valer muito a pena: o que eles vão fazer para abrir as portas? Não adianta ser dona do caminho e não dar a gasolina. Enquanto o que eu estiver fazendo funcionar, eu tô bem.
As cantoras de MPB vez ou outra são vítimas de preconceito…
Muito! “Cê é cantora? Cê é lésbica?” foram perguntas corriqueiras no começo da minha carreira. Mas eu tô nem azul pro que pensam de mim. A vida é minha. O artista é mais livre mesmo, ele não tem prisão de homem e mulher: ele quer é ser feliz, amor.
Mas acha que homens e mulheres chegaram a um ponto de igualdade na música?
Estamos melhorando sempre e cada vez mais, mas ainda não estamos em pé de igualdade. Temos grandes mulheres intérpretes, mas os músicos ainda são homens, em sua maioria. Se você procurar no Youtube vai ver meninas assumindo a bateria, o baixo… acho isso foda!
E de que maneira você colabora para isso mudar?
Luto pelo respeito. Acho que devemos ter autonomia no nosso corpo, por exemplo. Mas adoro ser mimada, adoro que me leve pra jantar e abra as portas do carro.
Já sofreu muito assédio?
Já fui vítima de investidas desrespeitosas, mas isso lá no começo. Hoje em dia não acontece mais: tenho uma postura clara e forte. Digo logo a que vim.
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