Junto dos amigos, o designer está resignificando a cultura gastronômica e botequeira da capital mineira. A receita? Mirar no passado sem um olhar saudosista, respeitando histórias e escalas.
Velho, novo, memória e passado são palavras que vão e vêm numa conversa com Rafael Quick, 31. Sócio do bar Juramento 202 e um dos fundadores do movimento que revitalizou um mercado popular no centro de Belo Horizonte, ele faz negócios que conversam com o tempo. E que dão certo porque conversam com os tempos da gente. É uma história que poderia ter muitos começos. Um deles é o ano que Rafael passou no Paraná e em que experimentou o tempo da vida no interior. Mineiro de Beagá, ele morava em São Paulo quando sua mulher recebeu uma proposta pra trabalhar no pólo de moda de Cianorte. Rafael pediu demissão de um emprego de designer na revista Superinteressante e foi junto.

Como freelancer, com escritório em casa, ele podia fazer seus horários e perambular pelas ruas da cidade numa segunda à tarde. Começou a notar o ferro-velho, a feira, os botecos, as vendinhas. “Dei uma apaixonada por essa expressão mais simples, vernacular”, lembra.
A identidade desses comércios tradicionais influenciou um trabalho tipográfico que ele fez na época, com um letrista local, e muito do que faria a seguir. Primeiro, veio o retorno a São Paulo, pra dirigir a arte da revista Galileu. Ali participou da criação de um projeto editorial que era um manifesto a favor do impresso, com direito à fonte inspirada em tipografia antiga, de madeira.
Depois, trabalhando na Mesa, consultoria que desenvolve soluções pra grandes empresas, ele juntou mais peças no seu estudo sobre o tempo. Sentiu que o principal desafio das marcas gigantes era se conectar com as pessoas. E que hoje quem fazia isso bem, e portanto mais as ameaçava, não eram outros gigantes, mas os piticos — vide a turma das microcervejarias. “Me deu um estalo: ser pequeno e ser pessoa é a melhor coisa que você pode ser agora.”

O passo seguinte foi empreender. Miúdo. De volta a Belo Horizonte, Rafael se juntou a amigos que estavam saindo de empregos na indústria e queriam abrir uma cervejaria — surgia assim a Viela, com a proposta de produzir cerveja artesanal com um valor acessível. Depois, veio a ideia de inaugurar um boteco pra vender essa cerveja sem intermediários — surgia assim, em 2017, o Juramento 202, numa esquina do pacato bairro Pompeia.
Pra montar o bar, os sócios pesquisaram a história do lugar e descobriram que ali tinha funcionado um armazém. “A ideia era resgatar o jeito antigo de fazer as coisas, com uma visão quase romantizada em cima do artesanal e da identidade mineira”, diz Rafael. “Dentro, a gente refez como um armazém, pra ter um pouco dessa memória. Fora, só mudou a cor, mas deixou com marcas do tempo, meio deteriorado, porque é a estética do bairro, e a gente não queria fazer uma coisa que contrastasse com o bairro.”

Se o bar contrastou, foi pela quantidade de gente que passou a se reunir pra tomar cerveja em copo a 5 ou 7 reais (hoje 6 ou 8 reais) e comer frios cortados numa fatiadora antiga. “Foi no boca a boca. Abrimos, chamamos amigos e família e, um mês depois, tinha 250 pessoas na porta. Virou o que elas fizeram dele: um rolé de rua, muito alegre.”
Era hora de abrir novos pequenos negócios. A mesma lógica de ocupação baseada no passado e no presente do lugar foi usada na Distribuidora Goitacazes e no restaurante Cozinha Tupis, inaugurados no fim de 2018 no então vazio segundo andar do Mercado Novo de Belo Horizonte (ele é chamado assim porque foi construído em 1960, 31 anos depois do Mercado Central).

Na Goitacazes, uma máquina de cravar tampinhas de 1956 “funciona às pampas” e engradados de madeira recebem garrafas retornáveis. “A gente olha pro passado, mas não de um jeito saudosista, é pra trazer soluções também. Como no impacto ambiental das garrafas, que muita gente usa uma vez e joga fora; aqui elas têm uma média de 61 ciclos.”
No Cozinha Tupis, a homenagem é às cantinas atuais do mercado — nas receitas do chef Henrique Gilberto e no visual, com menu anotado em placas de madeira e comida servida em pratos de vidro marrom.
Depois da chegada da turma da cervejaria Viela, mais gente correu atrás de seu espacinho por ali. O movimento de ocupação ganhou nome, Velho Mercado Novo, e estatuto com orientações pra preservar a identidade do local. “O mercado tem a história e a autenticidade, que é uma coisa que hoje tem muito valor”, diz Rafael. “O que faltava era alguém que ajudasse as pessoas a perceberem isso.”

Antes havia 150 lojas vagas no segundo andar. Hoje, todas estão alugadas, transformadas em 67 projetos, 42 deles já em funcionamento. Entre os novos ocupantes está o Jetiboca, que vende café produzido pela família de Rafael e transporta pro mercado um pouco do clima das fazendas cafeeiras de Minas — do cheiro do grão torrado às sacas de armazenamento. “O que a gente fez foi trazer a cultura da fazenda e mostrar que é maravilhoso, tem muito valor”, diz o designer. “A galera entra aqui e chora. É normal, cotidiano.”