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O diabo sequestrado e o Carnaval que não teve fim

Por
Ricardo Moreno
Em
16 fevereiro, 2017

São Francisco de Tilcara, na província de Jujuy, é uma cidadezinha ao noroeste da Argentina, a cerca de 200 km da fronteira com a Bolívia. Tem pouco mais de 5.500 habitantes. O verde das plantas resume-se, basicamente, aos cactos que brotam do chão. A cor ocre das casas, das montanhas e das ruas conferem à região uma paisagem desértica, lunar.

Trata-se de um local pacato, onde poucas coisas acontecem no decorrer do ano. Durante o Carnaval, no entanto, uma milenar tradição arrasta pessoas das cidades e países vizinhos. Suas ruas ficam lotadas. Em frente às casas, muito moradores colocam latões gigantes onde despejam qualquer tipo de bebida alcoólica. Munidos de canecas, copo de plástico e garrafas pet tampadas e com o fundo cortado, os foliões se abastecem dessa mistura infernal dia e noite.

Tudo é permitido durante uma semana, quando ocorre o tradicional desenterro e enterro do Diabo de Jujuy. É um rito milenar que ocorre em quase todos os povos do norte da Argentina e envolve diferentes mitos e crenças.

Para a festa começar, a primeira coisa a se fazer é desenterrar o tal diabo, representado por um pequeno boneco de pano, conhecido como Coludo, Pujllay o Supay, na língua quechua, e que traz as formas de um lúdico tinhoso.

Uma procissão em torno do boneco reúne milhares de pessoas, muitas fantasiadas com coloridas indumentárias, que tocam músicas a fazem danças típicas num espetacular desfile pelas ruas. Com o diabo vivo, à luz do sol, o Carnaval pode, oficialmente, começar.

O pequeno boneco simboliza o sol, que segundo as tradições locais é o encarregado em fecundar a terra. Enquanto o diabo está ‘solto’, tudo é permitido. A população para de trabalhar, bebe até cair e festeja 24 horas por dia. A bagunça só termina uma semana depois, quando ele é enterrado novamente. E a vida volta ao normal na região.

Eis que alguns anos atrás ocorreu algo digno do realismo mágico de Gabriel García Márquez: o diabo desapareceu. Com o seu sumiço, nada de enterrá-lo. E sem enterro, o Carnaval não podia terminar. E a população se recusava a parar de festejar. Ou, tomadas de uma força externa, não conseguiam parar de beber e pular.

Foram mais de dez dias de bagunça (o normal são oito, de sábado ao domingo seguinte), com pessoas embriagadas se arrastando pelas ruas, comércio e banco fechados, um caos. Ninguém aguentava tanta festa: os bêbados não conseguiam mais beber; as crianças já não tinham força para sair às ruas se molhar e brincar; os vendedores ambulantes já não tinham produtos para vender.

A bagunça era tanta, mas tanta, que o prefeito se viu obrigado a ir ao jornal e rádio da cidade fazer um pedido: “quem roubou o diabo, pelo amor de Deus, devolva-o”. Caso contrário a cidade jamais voltaria à vida normal. Eis que alguns dias depois, na sede da prefeitura, aporta uma caixa pouco maior que uma de sapatos. Dentro dela, todo estropiado, o Diabo de Jujuy.

A população festejou. Ninguém aguentava mais tanta baderna. Uma grande procissão se armou, inclusive com a presença do prefeito. Findo o enterro do beiçudo, como alguém que sai de uma anestesia, a cidade voltou ao seu estado normal. Até o próximo Carnaval…

Foto: Marco Vernaschi / Biophilia Foundation

Publicado originalmente no Revista-se, da Reserva

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