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Viagens, surfe e televisão em nome do pai

Por
Eloá Orazem
Em
8 fevereiro, 2016

Ela vai e volta com Deus, porque o pai manda e até os céus obedecem. Sua água benta é salgada, e sua oração é sempre uma maré cheia. Por força da fé ou do acaso, os mares se abrem todos os dias para que Rayane Amaral, 24, fique uma braçada mais perto de sua terra prometida: o mundial de surfe, na China, em dezembro. Filha de pais católicos e também adepta da religião, a atleta leva para os quatro cantos do mundo as bênçãos da família, mas não se abstém a fazer sua parte – treina pesado diariamente.Hoje, tentando vencer a correnteza da crise e angariar patrocínios, Rayane não economiza sorrisos e confessa toda sua esperança – porque sabe, por experiência própria, que, apesar dos caldos da vida, seus contos de fadas têm sempre finais felizes. Amém.

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Como é que o surfe entrou na sua vida?
Foi sem querer. Meu irmão estava quase repetindo de ano e, para incentivá-lo na escola, meu pai prometeu presenteá-lo com uma prancha de surfe. Meu irmão passou e meu pai acabou comprando três pranchas: uma pra ele, uma pra mim e outra pro meu irmão.

Você conseguiu ficar em pé de primeira?
Mais ou menos, porque eu comecei com uma prancha pequena. Fiz aulas de surfe e certa vez o professor insistiu para que eu pegasse uma onda com o longboard do meu pai. No alto dos meus 15 anos achava que longboard era prancha de velho, mas eles foram tão persistentes que eu decidi tentar só uma vez – e essa só uma vez está em vigor até hoje. O longboard virou a minha vida. Competi bastante, mas durante uns dois anos diminuí o ritmo porque comecei a trabalhar como dublê de ação e atriz.

Essa oportunidade como dublê apareceu por conta do surfe?
Sim. Os produtores da novela “Cheias de Charme”, da Globo, estavam atrás de uma menina que surfasse. Eu tinha que fingir que estava aprendendo a surfar. E, como eu sempre fui muito do esporte, acabei pegando vários outros trabalhos: precisa de cena de luta, eu vou; cena de carro, vou também. Acabei deixando o surfe de lado. Um dia um amigo organizou um campeonato no Recreio e não aceitou “não” como resposta. Era uma etapa do campeonato brasileiro! Nem acreditei que, depois de quase dois anos sem subir numa prancha, consegui ficar em quarto lugar. Foi ali que surgiu a oportunidade para gravar o programa “Em Busca do Último Paraíso”, no Canal Off.

Eles estavam lá te vendo?
Não exatamente. O filho do dono do Canal Off fazia as pranchas com um shaper amigo meu. E certo dia ele comentou: “pô, tô precisando de uma menina para completar o elenco do programa”. Acabou rolando. Só que eu não tinha passaporte, visto… não tinha nada. Era a oportunidade da minha vida e eu precisava fazer aquilo dar certo. Durante uma semana e meia meu pai abandonou o trabalho, abandonou tudo. Ele atendia o telefone e eu escutava ele dizer assim: “olha, eu tô ajudando a minha filha a realizar o sonho dela, agora não posso, depois eu falo”. Meu pai ligou para todo mundo que poderia nos ajudar e no final deu tudo certo. Em menos de uma semana eu consegui passaporte e o visto. Na primeira viagem passei 50 dias num barco, navegando entre as Ilhas Marshall e Fiji.

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Quando fez essa viagem, já tinha surfado ondas grandes?
Só aqui no Rio. Eu sou local na Praia da Macumba e lá dá umas ondas grandes. E todo mundo fala que, se você surfa na Macumba, você surfa em qualquer lugar do mundo, porque lá as ondas são bem pesadas.

Ou seja, a primeira dica é: não comece a surfar na Macumba!
[risos] Não, não, começa sim! Porque na Macumba, no cantinho da pedra, as ondas são bem tranquilas e pequenininhas. Dá todo tipo de onda: da marolinha às grandes – tão grande que às vezes nem dá pra entrar.

Todas essas reviravoltas na sua vida aconteceram bem rápido e sem planejamento, né?
Muito! Foi e está acontecendo muito rápido, porque eu voltei a treinar e estou levando o surfe mais a sério que nunca. Quero competir a etapa do mundial. Estou na correria em busca de patrocínio para conseguir ir para as etapas, que, na verdade, são qualificatórias para o título mundial que acontece na China, em dezembro.

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Por que você voltou ao surfe?
Minha vida voltou ao surfe de uma maneira que nem eu acreditei. Achei que tinha deixado o surfe de lado e estava em um caminho, mas os casos e acasos da vida me trouxeram de volta para as ondas. E eu sempre gostei muito de competir. Tanto que meu pai me sacaneia muito, porque eu sou muito igual a ele, sabe? Se tiver que competir bolinha de gude, eu vou competir!

Mas você sabe também perder?
Olha, confesso que já fui pior. Já aconteceu de eu sair de campeonato emburrada, de cara fechada. Hoje em dia eu tento tirar uma lição, qualquer aprendizado que seja. A gente vai amadurecendo e aprendendo.

E você cria umas competições na sua cabeça? Ficou competindo, por exemplo, com as meninas do programa?
Não, porque eu era a única longboarder da viagem. E é bem diferente o tipo de surfe, nem cheguei a pensar nisso.

Você teve a chance de fazer umas viagens absurdas, com uma galera totalmente diferente do seu mundo…
Voltei de viagem falando que eu amadureci uns cinco anos, pelo menos. Passei por experiências e momentos inéditos. Por exemplo, eu nunca tinha ficado tanto tempo longe da minha família. E eu sou uma pessoa muito chata pra comer, e só tinha umas comidas diferentes. Eu passei dias comendo miojo, de vez em quando o cozinheiro do barco fazia um peixinho grelhado. Nas duas últimas semanas de viagem, eu até brincava com o pessoal, falando que eu estava enlouquecendo, porque eu deitava e só pensava em comida. Queria chegar no Brasil e comer coxinha, comida japonesa, ribs…

Mas teve alguma comida, em alguns desses povoados, que você provou e gostou?
A lagosta foi algo que eu gostei muito! No começo via o pessoal comendo as patolas e achava estranho. Até que um dia o Miche [Michelangelo Bernardoni, surfista] cortou uma patinha e insistiu para que eu provasse. Ah, depois disso eu estava toda hora com uma patola na boca! [risos]

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Quais são seus próximos passos?
Bom, essa crise e esse dólar mudaram um pouco os meus planos. A ideia era fazer umas duas viagens para eu treinar e ir para os campeonatos, mas não vai dar. Eu ainda nem consegui patrocínio para ir para os campeonatos, que dirá para viajar e treinar!

Por conta do Medina, do Mineirinho, parece que todo mundo resolveu adorar o surfe. Você acha isso legal?
Acho que seria melhor se o Brasil não tivesse enfrentando tanta coisa. Eu tenho certeza que se não fosse essa crise, nós, atletas que vivemos do surfe, seríamos muito mais valorizados. E o que eu acho mais incrível é que, hoje em dia, quem mais apoia o surfe não tem nada a ver com o surfe: Oi, Panasonic, Mitsubishi…

O que te encanta tanto no surfe?
Em muitos momentos o surfe foi a minha válvula de escape. Toda vez que eu entro na água, eu não penso em mais nada. Melhor ainda se não tiver hora para sair.

Você nunca teve medo do mar?
Antes de começar a surfar, eu ia para a praia e tomava banho de baldinho. Te juro! Não sei o que me aconteceu, que eu entrei no mar e nunca mais saí.

E você já tomou algum susto?
No início eu era muito abusada, porque não conhecia os meus limites e não sabia respeitar o mar, até o dia em que eu quase morri. Fui num campeonato, lá na Praia da Macumba. O mar estava gigante. Vi muito homem desistir de entrar na bateria, e eu, com 17 anos, achei que podia encarar. Entrei na água e a correnteza me levou justamente onde ninguém estava indo. Aí começou a minha série: tomei um caldo, outro e mais outro. Tava igual a um liquidificador. Acho que tomei umas cinco ondas na cabeça antes de começar a apagar. A única coisa que eu lembrei foi virar a prancha para a areia para deixar a última onda bater. E foi o que me salvou, porque eu cheguei na areia deitada na prancha. Meu pai e meu patrocinador entraram de roupa no mar pra me tirar da água. Fiz um curso de apneia e natação para surfe e isso melhorou muito a minha confiança.

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Qual foi a maior onda que você já pegou?
Em Fiji, em 2014. Eu entrei de pranchão e todo mundo me olhando. A nata do surfe estava toda por lá, treinando para WSL. Todo mundo me olhava como se eu fosse louca. Primeira onda que eu dropei fui direto no coral e me ralei inteira. Toda onda que eu achava que era pra mim, alguém pegava. Resolvi sair e sentar na areia e esperar. De repente vejo uma movimentação: todo mundo saindo do mar. Veio a onda que eu achei que não viria! Não podia amarelar para não me queimar. Aí eu fui e vi a galera vibrando muito por mim, umas meninas que eu admiro muito. Na saída, algumas pessoas vieram até falar comigo sobre estar ali surfando de longboard.

Mas teve algum momento da viagem que foi particularmente marcante?
Teve um dia que estávamos gravando um mergulho e depois o diretor resolveu filmar um rolezinho em uma ilhota na região. Como eu sou muito curiosa, enquanto a equipe grava uma cena com o Miche, resolvi explorar a ilha, que era toda abandonada. Tinha um monte de coisa espalhada, parecia que tinha passado um furacão ali. Continuei andando e vi, de longe, uma coisa pendurada numa árvore. Quando cheguei lá perto vi que era uma garrafa, com um papel dentro. Tentei abrir a garrafa e não consegui. Pedi ajuda aos meninos e, quando finalmente consegui tirar o papel, vi que era uma página da bíblia. Não conseguia identificar a língua que estava escrito aquilo, mostrei pro diretor do programa – que fala alemão, francês, espanhol, inglês e português – e ele também não reconheceu aquele idioma. Só consegui entender que era uma passagem de Deuteronômio, capítulo 9. Naquela passagem dizia que a gente deve guardar nos nossos corações tudo o que a gente viu, que é pra gente passar para os nossos filhos e pras demais gerações. Aquilo me marcou muito.

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Se você pudesse levar a família para conhecer um dos lugares que você visitou, qual seria?
Qualquer um dos micro-países entre Fiji e Ilhas Marshall. Sempre digo a eles que, apesar dos relatos, das fotos e dos vídeos, ninguém vai entender o que foi essa viagem. As únicas pessoas que vão saber exatamente o que foi toda aquela aventura estavam no barco. É como a gente fala na igreja: eu posso te falar o gosto da bala, mas você só vai entender, de fato, quando prová-la.

Segue ela
@eurayaneamaral

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