No final do ano passado, a advogada e cinéfila paulista Helen Beltrame-Linné, 35, assumiu a direção do Bergmancenter, na ilha de Fårö, na Suécia. Ela é responsável por preservar toda a memória do cineasta Ingmar Bergman (1918-2007).
Natural de Ribeirão Preto, Helen ajudou na fusão entre as cervejarias Ambev e Interbrew, do Brasil e da Bélgica respectivamente, em 2004, quando ainda era advogada. Depois de largar a profissão para se dedicar ao cinema, ajudou a produzir algumas peças de teatro, se envolveu na comunicação do Festival do Rio e trabalhou naZazen Produções, de José Padilha.
Ela também acumula cursos de Direito Comercial pela Université de Paris 2 e Cinema na Sorbonne-Nouvelle (Paris 3). O trabalho como diretora-geral da fundação surgiu meio que por acaso. Depois de trocar o trabalho na Zazen por um curso de cinema em Paris, ganhou uma bolsa para um programa de residência no Bergmancenter, na Suécia. Acabou casando-se com um sueco, se mudou para Estocolmo e, tempos depois, conheceu Kerstin Brunnberg, presidente do conselho da fundação, que a convidou para dirigir o centro.
Leia a entrevista que fizemos com ela:
Por favor, fale um pouco sobre o acervo do museu. Ele contém mais objetos referentes à obra do cineasta ou a sua vida pessoal?
O Bergmancenter foi criado para responder ao interesse que existe a respeito do Bergman, especialmente naqueles que visitam Fårö. Ele desenvolveu ao longo dos 40 anos que morou aqui uma relação muito especial com a ilha, não só dela a sua casa, mas também locação de seus filmes – no total ele rodou 5 longas de ficção e 2 documentários aqui. Por outro lado, ele sempre foi avesso idéia de se criar um mausoléu em sua homenagem, então o nosso trabalho no Bergmancenter é contar a história dele aqui em Fårö, mas sem focar excessivamente no indivíduo. Então não temos quase nada de objetos pessoais dele aqui, exceto por alguns móveis que usamos na biblioteca e outra coisas assim. Eu diria que o maior foco é seu trabalho e as relações que desenvolveu com os locais aqui na ilha.
Que tipo de público costuma visitar o museu?
Muito variado – desde Bergmaníacos a suecos que vêm passar o verão aqui na ilha e querem um passatempo num dia de chuva! Fårö é uma ilha de veraneio, então existem muitos suecos que vêm passar as férias de verão aqui. E quando acaba o verão, é tão pouca gente que vem aqui, que o museu fica fechado!
Fotos: Maria Molin/Gotland.net
De que maneira você acredita que o museu facilita, ou proporciona, um contato mais aprofundado do visitante com a obra de Bergman?
Por essa relação extremamente especial que Bergman construiu com Fårö, eu acho que a visita ao museu revela muito sobre quem ele era e a opção que fez de se mudar para uma ilha isolada no Báltico, onde moram 500 habitantes durante o inverno. Nesse sentido o Bergmancenter é um lugar que não poderia existir em outro lugar, não poderia ser em Estocolmo. Todos que visitam saem muito tocados, acho que é uma experiência única que acrescenta muito.
No Brasil, Bergman é visto como um cineasta excepcional, dono de um estilo único, de uma obra imediatamente reconhecível. Como ele é visto na Suécia de hoje? Você acredita que seu legado siga conquistando novos admiradores a cada ano?
Na minha opinião os grandes mestres terão sempre espaço. O Bergman talvez tenha sido “moda” num certo círculo intelectual (especialmente fora da Suécia) nos anos 70 e 80, mas a verdade é que ele fez um cinema atemporal, que passou totalmente ao largo de maneirismos de época e mesmo de temas que eram atuais lá atrás e não o são mais. A grande força do cinema dele é falar do ser humano, de questões ligadas à nossa existência, e isso sempre vai atrair aqueles que se interessam por esse tipo de questionamento. Esse ano durante a Bergman Week nós fizemos um grande programa em torno de Sonata de Outono. O filme é de 1978 e o comentário mais frequente que tivemos nas discussões sobre o filme durante a semana foi: “Nem parece que foi feito há quase 40 anos!”.
2018 marca o centenário de nascimento de Bergman. Vocês já estão planejando as comemorações?
Sim, os contatos tanto na Suécia quanto internacionais estão a todo vapor. O interesse pelo Bergman é quase que certamente maior fora da Suécia do que aqui, então as conversas são com festivais internacionais, cinematecas de peso como a francesa e a alemã. Nosso objetivo é que Ingmar Bergman esteja nos quatro cantos do mundo em 2018.
Existe algum cineasta sueco que possa, na sua opinião, ser apontado como um sucessor de Bergman, ou ao menos sofrer muito sua influência?
Isso é complicado. Bergman se tornou um nome tão imenso no cinema sueco, que uma parte grande dos artistas daqui tem quase que no sangue uma certa rejeição a ele. Então a gente nota que a maior parte dos filmes inspirados ou baseados em Bergman são estrangeiros. Os maiores nomes do cinema sueco atual, como Roy Andersson, Lukas Moodysson e Ruben Östlund, já falaram muito mal do Bergman inclusive publicamente.
Que conselho você daria a um brasileiro que decida visitar o museu? Melhor época do ano, o que fazer na ilha, passeios combinados que por ventura possa haver…
Eu sempre recomendo aos brasileiros que venham para a Suécia no verão. Tem muita gente que tem aquela curiosidade com neve, e diz que a gente aí no Brasil já vive na quentura o ano inteiro. O grande lance do verão aqui é que o país muda completamente, as pessoas se abrem, tudo funciona, vai todo mundo pras ruas, pras varandas, pra fora mesmo. E os dias são longuíssimos, em muitos lugares não chega nem a escurecer, o sol vai descendo e passa rente ao horizonte e começa a subir de novo. Então é muito especial, mágico mesmo. Quanto a Fårö e o Bergmancenter em si, o museu por enquanto fica aberto de maio a setembro, então é uma época em que a ilha está a todo vapor, com restaurantes abertos, praia, lojinhas. Antes e depois disso é uma coisa mai “Bergmaniana”, pois a ilha esvazia, fecha tudo, mas tudo mesmo, e ficam aqui somente os 500 gatos pingados que moram durante o ano inteiro.
Ingmar Bergman
O museu tem alguma coisa que pode ser vista somente aí? Como o trecho de algum filme inacabado, sobras de filmagens…
A gente procura sempre mostrar material que não está a “um Google de distância”, então tem fotos, depoimentos, vídeos, muita coisa exclusiva. Durante a Bergman Week desse ano, por exemplo, mostramos os “backstage films”, ou seja, filmes que o próprio Bergman fazia da equipe durante as filmagens.
O trabalho de Bergman no teatro também é privilegiado no museu?
Não.
Descreva como é um dia de verão perfeito em Farö?
Para o Bergmancenter é um dia nublado, para o museu ficar bem cheio (risos). Para mim confesso que um dia perfeito é antes do verão começar mesmo, no início de maio, quando a ilha começa a florescer, com dias longuíssimos, quase sem noite, e ainda silenciosa sem a invasão dos turistas…