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Yentl e Peèle, da fazenda Lano-Alto, e a nova vida rural

Por
Fabiana Corrêa
Em
11 setembro, 2018

O casal de ex-publicitários, agora fazendeiros modernos, une conceitos da cidade aos saberes da roça. E começa a formar uma comunidade em torno dessa junção

Sentado na varanda enquanto Yentl passa um café na Chemex, Peèle me conta, entre outras coisas, que o sabor do mel que a gente conhece é apenas um entre os muitos que ele experimentou nessa fase rural de sua vida. “Existem centenas de espécies de abelhas no Brasil que produzem mel, cada um com um sabor diferente, e a gente só conhece o de uma que, aliás, é europeia”, diz. Ali mesmo, na varanda, há uma casinha de madeira com uma pequena colmeia de mela-olhos (também conhecida com lambe-olhos) que, ele me explica, é tradução do nome indígena do inseto: o bichinho tem o costume de pousar perto dos olhos das pessoas.

Os sabores do mel, a quantidade de galos para cada galinheiro, com quantos paus se faz uma cabana. Esses foram apenas alguns dos aprendizados que Yentl Delanhesi, 30 anos, e Peèle Lemos, 36 anos, adquiriram desde que mudaram para a vila Catuçaba, a 200 km de São Paulo, há quatro anos, e passaram a levar uma vida de fazendeiros. É lá que fica a Lano-Alto, a fazenda de 480 mil metros quadrados que os dois compraram há uma década, quando ainda eram publicitários, trabalhando loucamente em uma agência em São Paulo, e queriam um lugar para passar finais de semana longe do computador.

A cabaninha que o casal aluga para quem participa dos workshops

Por conta do trabalho, no entanto, deixaram tudo e foram morar em Miami. E, de lá, mudaram para Los Angeles, resolveram viver de frila e aproveitaram para entrar mais fundo no urban farming, a onda dos fazendeiros urbanos que se multiplicam pela Califórnia, onde plantar e produzir o próprio alimento, de café a kombucha, virou estilo de vida. “Eu fiz um curso de queijaria e fui trabalhar como estagiário em uma fazenda de cabras”, conta Peèle.

Até que veio um convite para trabalhar em Inhotim, repensando os rumos do instituto, e os dois passaram meses vivendo no meio do mato, dentro da fazenda do fundador, Bernardo Paz. A vida naquele silêncio todo tocou fundo e, cinco anos depois de partirem para os Estados Unidos, a Lano-Alto virou casa, onde Yentl e Peèle criam a pequena Pilar, de dez meses, trabalham no campo (além das tarefas da fazenda, Yentl dá aulas de inglês na comunidade, desenvolve um projeto de yoga na escola municipal e, ocasionalmente, os dois fazem frilas publicitários), produzem queijos e doces, cuidam dos animais – vacas, cabras, porcos, galinhas —, e recebem hóspedes igualmente interessados nos saberes e fazeres rurais.

A construção de uma das cabanas 3×4

Mas com esses donos, essa não poderia ser uma fazenda comum. A prova é que hoje parte de sua fonte de renda acontece por conta de redes sociais. “A gente vende nossos workshops e a produção para uma galera que nos conheceu pelo Instagram, que nunca teríamos encontrado de outra maneira. E isso é muito mágico”, diz Yentl. Essa tem sido uma das riquezas e aprendizados da nova casa e de chamar gente pra dividir o que estão aprendendo por ali. “A gente não quer só se alimentar do que é igual”, diz ela.

Os workshops — que variam entre a construção de uma cabana de madeira e a produção de pamonha desde a colheita do milho, bombam. “A gente recebe o dobro de inscrições em relação ao número de vagas”, diz Yentl. Isso quer dizer mais de 30 pessoas querendo matar galinha, fazer queijo e até carregar pedra para construir uma caverninha onde eles serão curados mais tarde. “A gente mima muito todo mundo que vem aqui, mas as pessoas querem mesmo é trabalhar”, conta Yentl.

Comer carne ganha um novo signficado quando você é responsável pelo animal

A caverna, aliás, parece ser um dos orgulhos atuais de Peèle. Sempre com Pilar a tiracolo, ele me mostra como vai evitar as infiltrações no teto e o que está planejando para o projeto de iluminação. Sim, porque Peèle é diretor de arte: nada aqui sai mais ou menos. Até o galinheiro tem um cuidado estético.

É pelas redes sociais também que os dois vendem a produção da fazenda, como os 200 vidros de doce de leite (cada pote leva 1,5 litro de leite de vacas jersey ou de cabra), receita menos açucarada que a média, que fez sucesso em São Paulo, para onde vão uma vez por mês entregar os pedidos. No momento, uma estagiária holandesa está por ali ajudando a mexer o doce nos tachos, vinda por meio do Wwoof (World-Wide Opportunities on Organic Farms), o site em que viajantes do mundo trocam hospedagem por trabalho em ambientes rurais. “A gente está fazendo o inverso do que fazíamos na publicidade, em que tínhamos que criar uma história para cada produto. Aqui, tudo já tem uma história”, diz Yentl, que trabalhava na área de planejamento e entende bem desse negócio de storytelling. Logo ela desistiu de planejar demais. “Aprendemos que se planeja o dia, mas a natureza muda os planos mais longos – e o tempo corre diferente”.

O figo e o milho viram doce e pamonha na Lano-Alto

Foi assim, sem planejar mas com muita história, que criaram os potes de alho fermentado em mel que venderam rapidinho em uma de suas idas a São Paulo, onde montam a banquinha em lugares como a loja de plantas Amapá Flowershop ou o restaurante Futuro Refeitório. Como muita gente produz mel na região, os dois queriam usar o ingrediente nas receitas, e aproveitaram o alho caipira local – que não é o mesmo do mercado, para criar a conserva. Assim, uniram a história do lugar à sua própria vontade de experimentar. Afinal, como diz o perfil da Lano-Alto no Instagram, trata-se de uma fazenda experimental. Ou, como consta em um de seus posts, “The importance of respecting history while being contemporary” (A importância de se respeitar história e ser contemporâneo ao mesmo tempo).

De kombucha a doce de leite, a produção da fazenda

A ponte que esse casal faz entre rural e urbano, o atual e o antigo, entre quem vive na cidade mas quer aprender o que vem da roça, também acontece ali, em Catuçaba, entre eles e os locais. Peèle e Yentl não pertencem ao lugar. Isso fica fácil de perceber quando saímos da fazenda, cuja porteira fica a 500 metros da vila. Mas, aos poucos, se envolvem à sua maneira – e talvez com Pilar seja diferente. “Acho que ela vai ser uma catuçabense”, diz o pai. Enquanto sentamos em um pequeno restaurante vizinho para comer arroz, feijão, macarrão e bife, uma mulher brinca com a pequena. E aproveita para convidar a família para a festa da Capela do Bom Jesus. “Vão lá no sábado”, fala, sentada em uma outra mesa ali ao lado, enquanto almoçamos.

Essa ligação com os moradores da vila também trouxe aprendizado. Em termos práticos e utilitários, a maior parte dele. Quando caminhamos pela fazenda, Peèle aponta João, funcionário da Lano-Alto, trançando cestos de taquara. Na entrada estava Felipe, recém-contratado porque João se machucou, que consertava uma cerca. “É incrível o que eles sabem quase naturalmente”, diz.

Ele aponta também os porcos enormes em um cercado. Diz que o animal do vizinho está ali para fecundar a fêmea da fazenda e, quando tiverem filhotes, cada um dos donos fica com metade da cria. “A gente acha que inventou essa história de shared economony. Que nada! Aqui o povo faz a ‘meia’”, diz, também sobre as cabras que acabaram de chegar. O dono dos bichinhos deixa eles no pasto da fazenda e, quando nascem filhotes, cada uma das partes fica com um cabritinho. Enquanto isso, Peèle aproveita o leite para testar uma receita apenas deliciosa de doce, que ele nos serve junto com o café. “Aprendi a trabalhar com leite de cabra na Califórnia e todo mundo me perguntava se eu não ia produzir por aqui, até que veio essa oportunidade”.

Yentl trabalhava no planejamento estratégico de uma agência de publicidade

Oportunidade é algo que se enxerga em todo o entorno – e é difícil manter o foco às vezes. Uma vez que os porcos estavam ali, Peèle começou a estudar a possibilidade de ter uma charcutaria. “Uma coisa vai puxando a outra”, diz. Os porcos mesmo vieram porque havia um excedente de soro de leite da produção dos queijos – e o líquido serve de alimento para os bichos. Agora que estão procriando, ele pensa em fazer salame e linguiça. Sem stress algum relacionado a ter carne no prato. “À medida que você se responsabiliza pela maneira como os animais são criados e mortos, a relação com a comida também muda”, diz o idealizador do workshop Fins, que fizeram em 2016 e reuniu gente para escolher, matar e depenar um frango, com ensinamentos da dona Cida, moradora da vila. “A gente atua como mediador, traduz um pouco para o pessoal de fora o que se faz aqui, mas todo o saber já existe”, conta. E, ao final, cada um dos participantes saía com o seu frango debaixo do braço, devidamente preparado para a culinária.

Peèle durante o trabalho diário na fazenda

A empreitada mais recente desses fazendeiros é a de construtores. O casal está aumentando seus domínios e começa a ver uma comunidade real onde se cruzam os habitantes dos dois lados das pontes que vem estabelecendo. Em uma de suas buscas online, Peèle encontrou um terreno à venda ali por perto, anunciado no site OLX. Contou a alguns casais de amigos e três aceitaram dividir a terra. Apenas um já era de antigos conhecidos, os outros vieram por meio dos workshops e contrataram o fazendeiro para erguer as casas. Na sua pequena marcenaria, ele faz encaixes nas vigas de madeira que irão servir de apoio para as paredes, aprendizado que veio de um curso, das conversas e trocas com os locais que ele emprega e de muitos vídeos que assiste à noite, no YouTube, depois que deixa de lado as ferramentas do mundo real. É assim que Peèle e Yentl constroem seu saber, misturando todos os mundos pelos quais passaram nos últimos anos. E essa mistura se mostra também na pequena comunidade que começa a se formar em torno deles, de amigos da cidade e de gente como Felipe e João, que “nasceram” sabendo coisas que parecem complexas demais para quem é urbano, como um cesto de taquara ou a montagem de uma colmeia de lambe-olhos.

“Terminamos uma casa agora, estamos levantando a segunda. É trabalho pesado, mas uma maneira de nos manter”, diz. Por ter conectado o corretor de Catuçaba aos compradores da terra, receberam uma comissão. São duas novilhas que entraram para seu pequeno rebanho. E lá voltamos aos conceitos super atuais da economia compartilhada, escambo de talentos e das múltiplas carreiras ao longo da vida. Nada que não existisse há centenas de anos, mas que na Lano-Alto se somam a um olhar contemporâneo, às vezes artístico, de quem valoriza o que sempre esteve lá. A gente é que não sabia.

Vacas, cabras, porcos, galinhas são criados pelo casal

Crédito das fotos: divulgação/reprodução

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