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“Perto da morte você se sente muito vivo”: Carlos Burle conta como construiu sua fortaleza mental e o que move um big rider fora da água

Por
Adriana Setti
Em parceria com
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Bicampeão mundial de ondas grandes, o pernambucano que conseguiu se manter no surfe de elite até os 50 anos de idade revela quais são as suas motivações em terra firme.

“Sou praticamente o único sobrevivente da minha geração do surf no Brasil, no sentido de ter postergado a aposentadoria e levado a carreira pra fora da água”, diz Carlos Burle, aos 53 anos. Bicampeão mundial de ondas grandes, ele teve seu nome estampado no Guinness World Record ao surfar uma parede de 22,6 metros em Mavericks, na Califórnia, em 2001. Um dos maiores nomes de um esporte que exige um preparo físico e mental quase sobrenatural, o pernambucano radicado no Rio de Janeiro também entrou para a história ao encerrar sua carreira aos 50 anos de idade, competindo nas gigantes de Nazaré. Foi no vilarejo português, também, onde ele pegou a que pode ter sido a maior onda já surfada, de entre 32 e 35 metros, nunca homologada pelo Livro dos Recordes. Afastado das competições, Burle segue encarando mares enormes como diversão e pilotando o jet-ski para o fluminense Lucas Chumbo, seu pupilo e uma das grandes promessas do surf mundial. Aqui, ele conta o que faz um big rider se sentir vivo fora da água, como construiu sua fortaleza mental e onde estão as maiores ondas do Brasil.

Você é bicampeão mundial de ondas gigantes, bateu recordes e competiu até os 50 anos de idade. Você conquistou tudo o que queria no surf?

Conquistei muito mais do que queria. O surfe entrou na minha vida como uma ferramenta para estar perto da natureza e exercitar o autoconhecimento. Depois, senti que precisava me profissionalizar e usei o esporte para alcançar o meu grande sonho, que era ter qualidade de vida. Mas seria muita pretensão achar que um dia conquistaria títulos mundiais e bateria recordes. Assim como jamais imaginei que o surf chegaria às Olimpíadas. Venho de uma realidade na qual era muito difícil acreditar nisso.

Que realidade é essa?

Comecei a surfar em Recife, Pernambuco, no começo dos anos 1980. Naquela época, o surf era marginalizado e relacionado com as drogas. A gente não tinha em quem se inspirar profissionalmente ou exemplos de profissionais bem sucedidos para mostrar às nossas famílias, como acontece hoje, com surfistas sendo valorizados, bem remunerados e construindo uma boa imagem dentro e fora da água.

Carlos Burle | Crédito: Divulgação

Você gostaria de ter iniciado a sua carreira já cercado por essa estrutura que o surf tem hoje, como acontece com o Lucas Chumbo, por exemplo?

Não, não! Sou um cara self made. Quando comecei, o surf era uma interrogação. E quando passei a surfar onda grande, essa categoria da profissão nem existia. Meu pai chegou pra mim e disse que eu ia terminar a vida empurrando carroça e catando lixo. Isso foi minha grande motivação! É claro que sempre treinei pra ganhar campeonato, mas o meu principal objetivo era a transformação desse meio. Aos 14 anos, cheguei a escrever um manifesto dizendo que precisávamos mudar a imagem do esporte.

A que você atribui essa mudança na imagem do surf?

A muitas coisas. Em primeiro lugar, por se tratar de um esporte realmente mágico e pela relação que o surf tem com o estilo de vida. Não é só um esporte de performance. É uma prática que proporciona uma relação intensa com a natureza e ainda oferece muito aprendizado emocional. As pessoas que pegam onda também entram em contato com os valores do surf: a sustentabilidade, a qualidade de vida, o respeito. Lógico que estou generalizando e que ainda existe o surfista que se acha o dono da praia e quer brigar por onda. Ou aquele que acha que faz bem para a natureza, só que não entende que a prancha ainda é um produto muito tóxico. Mas tudo isso faz parte da evolução do esporte.

Burle encara poderosa Jaws, em Maui, no Havaí | Crédito: Divulgação

Que aprendizados emocionais são esses que o surf proporciona?

A paciência pra esperar uma onda, o compartilhar de uma arena da qual ninguém é dono… Diferente do que acontece num campo de futebol, que é um espaço privado, no mar você pode surfar ao lado de um Kelly Slater, de um Ítalo, de um Gabriel Medina. E todo mundo é igual.

O que você quer conquistar a partir de agora?

O que eu quero tem mais a ver com retribuir ao meio por tudo o que já conquistei. Não falta nada na minha vida. Consigo garantir educação, segurança e saúde à minha família. Tudo através do esporte. Sou consciente de que tenho uma situação privilegiada e quero retribuir isso, seja através do meu trabalho como treinador do Lucas Chumbo e outros atletas da nova geração, seja dando exemplo dentro da minha comunidade, motivando e incentivando os mais jovens ou me envolvendo em projetos socioambientais. Minha grande vontade daqui pra frente é fazer uma transformação positiva onde eu puder tocar. Não tenho mais vontade de pegar alguma onda que nunca surfei ou coisas do tipo. Lógico que quero continuar surfando, mas isso já não é a minha principal motivação.

Carlos Burle | Crédito: Gregório Braga

Por falar em motivação, o que o motivou a escolher o surf de ondas grandes?

Uma das coisas foi chegar ao Havaí nos anos 1980 e ouvir que brasileiro era maroleiro. Já havia uma geração de surfistas que até se apresentava bem em ondas maiores, mas a imagem continuava sendo essa, como se estivesse escrito “maroleiro” na nossa testa. Éramos vistos como “haoles” [intrusos], não éramos bem-vindos. Disse a mim mesmo que queria mudar isso. Quando fui campeão mundial de ondas grandes em 1998, no México, quebramos um paradigma! Dali pra frente, ninguém mais falou que surfista brasileiro era maroleiro. Outra motivação que tive na vida foi esse estereótipo de que surfista não sabe falar, ou foge da escola. Contratei uma fonoaudióloga, me preparei e há 20 anos dou palestras para empresas. Meu trabalho com a Maya Gabeira também partiu de um desafio, que era mostrar que mulher também pode pegar ondas grandes.

Já que você tocou no assunto dos brasileiros vistos como maroleiros, tem onda grande no Brasil? Quais as maiores ondas que você já surfou por aqui?

Na barrinha de Saquarema rola um tubo pra direita que parece Backdoor Pipeline, no Havaí, legal pra caramba. Por ali também tem a laje de Jaconé, onde peguei meu melhor tubo no Brasil de tow-in com o Lucas [Chumbo] e o pai dele. Em Fernando de Noronha, já vi o Boldró bem melhor do que a Cacimba do Padre, que é mais famosa. É uma onda difícil, uns direitões gigantes, com fundo de pedra, mas me dei muito bem nela. Em Maresias, no litoral norte de São Paulo, também já fiz muito tow-in em mares grandes. O que me chamou atenção quando comecei a colocar pra dentro dos tubos foi sentir que o spray da onda dói, vem aquele bafo. Pela minha observação, isso quer dizer que a onda tem um poder diferente. Não é à toa que o Gabriel Medina e os irmãos Samuel e Miguel Pupo surfam pra caramba.

Para os mortais que olham de fora, surfar uma onda de 30 metros em Nazaré parece ser uma experiência totalmente sobrenatural. Depois de fazer isso (várias vezes) o que mais faz você vibrar?

Se você não tomar cuidado, começa a achar que a vida só faz sentido quando se está vivendo um momento de muita adrenalina. Esses momentos são realmente muito especiais. Por se sentir perto da morte, correndo um risco tão forte, você se sente muito vivo. E depois, ao voltar à sua realidade, em um cotidiano comum, é difícil encontrar esse tipo de emoção. O caminho é substituir a adrenalina pelo amor e a gratidão. É pensar: “meu Deus, que vida é essa! Obrigado pelos meus desafios!”

Burle em Ghost Trees, Califórnia | Crédito: Divulgação

A que outros desafios você se refere?

Tenho muitos desafios físicos, emocionais e espirituais. Mas quando você começa a desenvolver sentimentos nobres, aprende a chorar sem pegar uma onda grande.

Chorar?

Sim, já chorei muito depois de sessões de ondas grandes. É aquele choro da intensidade, de olhar pra vida e ver como ela é intensa. É muito gostoso, mas tudo isso pode ser substituído pelo amor e a gratidão, que também são muito fortes.

O que vem à sua cabeça naquele momento em que você larga a cordinha do jet-ski e dropa uma onda monstruosa? Passa o filminho da vida toda?

Não vem muita coisa na cabeça porque você está muito conectado com aquele momento. As emoções estão à flor da pele, mas você está totalmente presente. Não dá pra ficar preocupado se tem uma conta pra pagar, se faz tempo que você não fala com os seus filhos ou se precisa resolver um problema na sua empresa. Você está ali e é aquilo que importa, porque os desafios imediatos são enormes. Não é à toa que as pessoas relatam essa sensação de flow ao surfar ondas grandes. Quando você entra nesse estado, seu reflexo fica muito apurado e a visão se restringe àquele momento, que é o único que existe. Você não pensa em mais nada e vai reagindo de acordo com o que acontece, sem perder o controle emocional. Só depois que você esfria consegue uma análise crítica da situação. Naquele momento, é pura fluidez.

Carlos Burle na Burle Experience, sua escola de esportes aquáticos, meditação e yoga no Rio de Janeiro | Crédito: Divulgação

Por que você testa tanto os seus limites?

Gosto de testar meus limites porque acho muito interessante lidar com as minhas emoções. Gosto de fazer isso com as outras pessoas também. Estou sempre dando parabéns aos meus alunos na Burle Experience [sua escola de esportes aquáticos, meditação e yoga no Rio de Janeiro] quando eles lidam com as emoções fortes e superam limites, demonstrando equilíbrio sob pressão.

E como a sua família sobreviveu a tudo isso, a começar pela sua mãe?

Aqui é importante você entender o perfil da minha mãe. Ela sempre me disse: “filho, siga o seu coração, faça o que for melhor pra você, seja uma pessoa do bem, tenha objetivos que sejam importantes a você e aos outros e faça o que quiser — se você morrer, eu enterro”. Ela é enfermeira, trabalhou muito com pacientes terminais e está acostumada com a morte. Nossa família também tem um viés espírita, o que ajuda. Minha primeira mulher se acostumou e a atual [a gestora ambiental Lígia Moura] já entrou na relação sabendo disso tudo. Claro que elas ficam preocupadas, mas sabem que não sou doido, que treino bastante. O doido, que não tem medo, é o que morre.

Burle com a esposa, a gestora ambiental Lígia Moura, e os filhos Iasmin e Reno | Crédito: Reprodução

Seus filhos têm algum interesse pelo surf?

Minha filha, Iasmin, de 22 anos, gosta de praia, já surfou. Mas ela faz faculdade de medicina na Polônia, em Varsóvia. Imagina o orgulho pra mim! E meu menino, o Reno, de 11, curte videogame, como todos. Ele até gosta de surf e praia, fica que nem pinto no lixo no Burle Experience. Só que é muito competitivo e acaba se decepcionando quando não consegue surfar direito. Mas nunca tivemos essa cabeça de querer se realizar através dos filhos. Damos saúde e educação e o resto é com eles.

Alguma coisa mudou na sua perspectiva do surf de ondas grandes depois do acidente da Maya Gabeira? [Em 2013, a atleta sofreu um acidente em Nazaré e foi resgatada por Burle, que precisou descer do jet-ski para salvá-la do afogamento em plena arrebentação]

Não. Hoje os equipamentos são outros, a minha experiência é outra, temos uma tecnologia que nos permite trabalhar com muito mais segurança, mas continuo tendo a mesma abordagem diante da vida.

O que foi criado em termos de segurança desde então?

O dia do acidente da Maya foi o primeiro em que surfamos um mar daquele tamanho. Estava sozinho com ela às 7h15 da manhã, no meio de toda aquela espuma e em condições que a gente nunca tinha visto antes. Isso não aconteceria hoje em dia. Agora temos muito mais jet-skis trabalhando, com uma comunicação bem melhor entre eles e apoio de uma equipe de terra bem preparada. Se acontece alguma coisa, todo mundo vai socorrer a pessoa. Também há um helicóptero disponível. Houve muita evolução na tecnologia que foi incorporada ao nosso trabalho e a tendência é que se consiga minimizar as consequências desse tipo de acidente. Estamos indo muito bem. A comunidade do surf de ondas grandes passou por momentos difíceis nos últimos anos, mas teve pouca fatalidade. O que ficou muito presente foi o movimento da própria comunidade com relação à necessidade de se capacitar. Isso porque, invariavelmente, uma vítima dentro da água vai ser socorrida por um de nós, surfistas. E, como cada segundo faz a diferente, você precisa estar preparado para fazer esse primeiro contato da melhor forma possível, antes da intervenção de um profissional.

Que projetos você está tocando atualmente?

Temos muita coisa para fazer no Burle Experience. Estamos crescendo muito mais rápido do que imaginávamos. Trabalhamos focados na qualidade dos equipamentos e na capacidade dos instrutores, mas entendemos que temos uma ferramenta de transformação do ser humano muito forte nas mãos e que não podemos parar ali. Então, estamos estendendo a nossa operação a outros lugares e recebendo vários convites de empresas, escolas… Fora isso, treino o Lucas, faço meu trabalho com os meus patrocinadores, e dou mentorias para empresas. Tudo está conectado e tem a ver com o meu estilo de vida. Isso que é legal.

Carlos Burle em Teahupoo, Taiti | Crédito: Divulgação

Como você escolhe os seus projetos?

Toda vez que tenho um desafio novo, me pergunto se estou vivendo mais próximo do meu sonho. Se está me afastando, não boto energia.

Como você se preparou mentalmente ao longo da vida pra encarar os desafios?

Comecei a praticar yoga aos 14 anos, virei vegetariano quando ainda se achava que arroz integral era comida de passarinho e, aos 19 anos, quando vim morar no Rio de Janeiro, me iniciei na meditação transcendental com o professor Klebér Tani. Fui filtrando um pouco de cada ferramenta, sem muito fanatismo ou apego. Tenho sempre a cabeça do aprendiz, que quer experimentar e fazer da vida um laboratório. O questionamento é inerente à minha personalidade e usei o surf pra me conhecer melhor. Agora… sou uma pessoa muito intensa. Foi isso que me levou à minha profissão e a, dentro do surf, escolher a categoria de ondas grandes, na qual a adrenalina está ainda mais presente. Se não tivesse procurado essas ferramentas pra entender melhor o meu emocional, não estaria onde estou. Até porque não sou uma pessoa muito privilegiada fisicamente. Sou pequeno [ele mede 1,71m] e já me machuquei bastante. Então preciso usar muito a cabeça e controlar as minhas emoções. Sem isso, o treinamento físico não serve pra nada.

Burle e seu pupilo, Lucas Chumbo, uma das grandes promessas do surf mundial | Crédito: Divulgação

Como você está hoje em dia fisicamente?

Depois que encerrei a carreira nas competições, o meu corpo deu uma esfriada. A adrenalina vai te levando, neutraliza as dores, traz uma motivação extra física e mental. Mas, depois que você deixa de competir, é como se o corpo falasse: “pô, então agora cuida de mim, porque você já abusou muito”. Meu desafio hoje é justamente entender que não tenho mais aquela saúde física e não posso andar na velocidade de antes. Talvez tenha que fazer uma cirurgia de joelho, porque o cruzado está lesionado, e fiquei com o quadril muito mais preso pra compensar essa lesão. Quando acho que vou conseguir me recuperar rápido, a vida me fala que não é bem assim. É um aprendizado constante.

Do que você tem medo?

Tenho medo de tudo! De morrer, de envelhecer, de não ter dinheiro pra pagar as contas dos meus filhos. Sou como todo mundo.


A vida é aqui fora!

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