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Tuyo, o trio paranaense que canta a nudez dos sentimentos

Por
Lilian Kaori Hamatsu
Em
4 julho, 2019

Por meio de uma mistura de batidas sintéticas, vozes harmônicas e letras orgânicas, a Tuyo quer desachatar o papel do negro para que sejam vistos de maneira menos caricata e mais complexa

No livro aberto da Tuyo, personagens multidimensionais dão vida aos sentimentos e memórias de Lilian (Lio), (Lay)ane e Jean, a trinca de artistas pretos e paranaenses que enfrenta a vida de peito aberto e coração pulsante. Antes cronistas do que poetas, o trio quer “desachatar o papel do negro, fazer com que sejam vistos de maneira menos caricata e mais complexa”. Nua e corajosa, essa mensagem está contida na mistura de batidas sintéticas, vozes harmônicas e letras orgânicas, ao mesmo tempo belas e viscerais. Tuyo, em tradução direta do espanhol, significa teu e “dentro da palavra ainda tem você e eu”.

O amor pela cultura latino-americana cresceu quando as irmãs Soares, Lio e Lay, foram apresentadas ao trabalho de Gabriel García Marquez. De lá pra cá, a influência do autor aparece indiretamente nas composições da Tuyo. Carregado de brandura e com uma estética suave, o trio relata episódios de perda e frustração que enfrentaram em suas vidas com a naturalidade imposta a qualquer outro sentimento. “Sem romantizar o que não é romântico, sem carregar o fardo de ter que superar instantaneamente. A única certeza que temos é a finitude, a morte. Nossa música é sobre enfrentar seus demônios de uma maneira menos dura, mais doce”.

Como a vulnerabilidade das letras dialoga com a vivência de vocês?

Nos mostrarmos vulneráveis enquanto artistas acaba provocando e estimulando quem ouve nossas músicas a acessar os próprios sentimentos. Isso é uma parada que acreditamos ser uma espécie de função da arte. É um fenômemo que acontece quando as pessoas sentem não somente coisas que somos estimulados socialmente a sentir, como vontade de comprar, de comer, ou tesão. São coisas duras que precisamos sentir justamente pra pensar nelas.

Apresentação da Tuyo, banda formada pelas irmãs Lilian e Layane Soares e por Jean Machado | Foto: Luciano Meirelles

Embora a música seja uma jornada de autoconhecimento para os integrantes do trio, o olhar de quem ouve as canções é único e revela um encontro dessas pessoas com si próprias. Ao partir da premissa de que um artista não pode oferecer muito mais do que a maneira como ele mesmo enxerga a vida, a Tuyo reforça a presença e a identidade negra por meio de rostos e corpos similares aos seus. “Isso desconstrói o arquétipo do preto bravo e normaliza a presença dessa figura em espaços sociais onde ele geralmente não aparece”.

Como funciona o trabalho coletivo na Tuyo?

Lembramos de ouvir que pra uma banda funcionar bem, tinha que ter um que manda e outros que obedecem. Isso não rola aqui, com três dá pra votar e alguém sempre desempata. Imaginamos que um dia isso seria um problema porque somos todos compositores, líderes, caciques, não tem um que abaixa a cabeça. O que une a banda, na verdade, é mais o fato de sermos amigos do que nossas relações familiares [Jean é namorado de Lio e Lay é sua irmã].

“Discutimos muito sobre como sintetizar sentimentos complexos para deixá-los mais democráticos, nunca quisemos ser uma banda cabeçuda”. Dessa maneira, propositalmente desprovida de rebuscadas ferramentas intelectuais e técnicas, a Tuyo quer mesmo é que a galera compreenda a linguagem verborrágica tão intimista ao falar de dor. Entre eles, jamais serão desprezadas as raízes pop, mas a influência de outros ritmos certamente mantém o trio motivado.

O que não sai da playlist da Tuyo?

Estamos escutando muito o novo disco da Tássia Reis. Também tem GoldLink, H.E.R., e uma dupla foda demais chamada YOUN. Estamos nós três deslumbrados porque esses meninos são prodígios, não é normal o que eles estão fazendo.

Lay, Jean e Lio, a Tuyo | Foto: Guilherme Costa

Naturais de Curitiba, no Paraná, Lio, Lay e Jean “não tinham grana e fizeram barulho pela internet, já que era a maneira mais viável”. Durante a entrevista, a palavra guria enriquecia o vocabulário em exercício. Para Lio, o termo “dá senso de pertencimento ao sul, une a outras mulheres, localiza e pluraliza”. Desde que a turnê Pra Curar teve início, sem esquecer das origens, a Tuyo já rodou o Brasil e se apresenta ainda nesse mês em Portugal (Lisboa) e na República Tcheca (Ostrava).

Vocês foram convidados pra tocar em um festival na República Tcheca. Quais são as expectativas da banda para o verão europeu?

Um verão europeu ideal seria um verão europeu. Mais do que isso é muito além do que imaginamos nas nossas vidas. É surreal, muito fora da nossa realidade, falamos sempre em voz alta pra ver se acreditamos. Essa é a nossa primeira vez na Europa e não estamos indo pra tentar nada, nem pra arriscar, fomos chamados por um festival. É muito bonito que uma curadoria fora daqui tenha compreendido a nossa linguagem e tenha se debruçado sobre a ideia de contratar uma banda brasileira pra tocar num festival na República Tcheca. Isso é um fenômeno da natureza. Estamos absurdamente felizes. Para além do show, esse contato com pessoas diferentes, de realidades diferentes, em ambientes diferentes, vai ser uma baita experiência de vida pra gente.

Além das apresentações no verão europeu, a Tuyo se prepara para outras muitas realizações: uma parceria com a Natura Musical já é vista no horizonte, assim como mais viagens, amizades e muita estrada pela frente. “O futuro é algo próximo de coisas que sonhei há muito tempo. Já está na hora de sonhar de novo”, reflete Lio.

Na Tuyo, qual é o vislumbre de um futuro mais solar?

Sonhamos com um futuro equivalente, em que tenhamos mais autonomia intelectual pra decidir as coisas. Qualquer camada social desprovida de privilégios que acessa objetos de arte consegue romper barreiras e quebrar cadeias. Queremos que mais dessas pessoas sejam estimuladas a destruir ciclos de escassez e acessar espaços onde há abundância.

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