Vibes

“Brindo”, uma ficção gostosinha num dia quente no verão catalão

Por
Renan Flumian
Em
30 abril, 2020
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O encaixe entre dois corpos é uma questão de alquimia com ciência com arquitetura com engenharia e um pouquinho de pó de vaga-lume

Para ler ouvindo Devendra Banhart

Barcelona. Verão de 2013. Sala Apolo lotada. Amarante anunciou que algo iria acontecer quando soltou um saravá em alto e bom som. Antes mesmo do Devendra entrar, uma espanholeta pediu licença com seu cheiro e se acomodou milagrosamente à minha frente. Antes de qualquer ato irracional de minha pessoa, meu amigo porteño já tinha sucumbido e tentou tocar aquelas curvas que se projetavam no espaço.

Eu, seguindo as reglas de caballería, segurei meus instintos mais humanos e vi de longe as investidas do meu agora odiado hermano. Nada. Ela não fez caso, mas também não se moveu. Permaneceu ali na minha frente como se tivesse assento marcado pelo destino. 

O porteño desavisado veio falar daquela morena como se somente ele tivesse notado tamanha presença; não lembro o que disse, nada importava. Mantive todos os meus sentidos destinados a absorvê-la, mesmo que a distância.

A cada música caminhava centímetros para chegar mais perto dela. Na terceira já recebia tapas de seu cabelo, como que anunciando nosso futuro masoquista. Queria mais. Continuei. Lá pela quinta música já podia cantar nos seus ouvidos, e ela fazia que não se importava. Foi aí que senti seu cheiro invadir meus poros. No exato instante em que Devendra cantou “no pienso en tí, solo te siento, pasando por mí, como un dulce viento”, não tive mais dúvidas de que esse lance do destino sorrir podia ser verdade.

Os deuses estavam comigo! E assim fui encurralando seu corpo contra uma parede mágica. Abençoado, seguia tentando tocar qualquer parte de seu corpo. Meu pé bateu no seu calcanhar e eu delirei. Meu peito tocou levemente em suas costas e eu já não estava mais lá. Até que ensaiei um contato de maior superfície corporal e ali mesmo já tive notícia de uma ereção. Sua indiferença notando presença me enchia de tesão….

Se Devendra soubesse o que estava rolando ali embaixo, com certeza faria o show mais longo da história, tudo para dar tempo de atravessar o corpo daquela morena de Huesca. O pobre não sabia e até hoje não sabe. Mas pobre mesmo de mim porque Devendra anunciou a saideira e eu nem tinha balbuciado qualquer besteira naquelas orelhas criadas para ouvir cantadas provenientes de todos os continentes. Era tudo ou nada e então pedi um beijo da forma mais adolescente, contando com certa compreensão generosa; que nada; ela disse não sem rodeios, mas também não saiu dali. 

Não podia terminar assim depois do volumoso prenúncio… Só que as pessoas já começavam a sair, eis que saltei diante dos seus olhos e disse três vezes o meu nome. Não importava se fosse o de nascimento, artístico, mas sim que fosse meu nome de Facebook e lá ela pudesse me encontrar para eu continuar acreditando na possibilidade de um dia percorrer aquelas curvas gaudianas…

Depois de lançar a semente tecnológica, convidei-a para una cerveza saindo pela Rambla 113, ela concordou sem certeza e disse que ia buscar a amiga. O hijoputa do porteño gritou meu nome e a mudança do horizonte focal foi suficiente para eu não ver mais ela — Carajo! No lo podia creer. Era uma multidão e eu teimei em esperar, caminhei com pernas e olhos, tantos rostos desconhecidos, como até então o dela, mas nada chamava minha atenção. Não a encontrei.

Sem escolha, caminhamos eu, o porteño e uma amiga brazuca até a Taberna Blai Tonight, considerada por poucos conhecidos o melhor bar de “montaditos”, aka pinchos, da cidade. Ali tantas outras espanholas se apresentaram ao meu olhar, mas nada se equiparava à experiência vivida. Não podia acreditar que ela tinha ido embora para sempre. Mudamos de bar devido minha insistência, queria desafiar qualquer lei da ciência e encontrá-la para fingir-me surpreso e bradar que aquilo era coisa do destino. Mas o tempo passou, os bares se esvaziaram e nada. Era hora de desistir e aceitar os “nãos” da vida.

Despedimo-nos do argentino e logo depois chegamos na casa de minha amiga, que prontamente foi se deitar com o marido. Já eu caminhei até a varanda para cobrar explicação da cidade: como foste capaz de na mesma noite me apresentar aquela morena e logo após retirá-la de mim. 

Sentia que as calles tinham tragado aquela zaragozana… Pego o computador para a cotidiana atualização de notícias rasas e fofocas, feita com certa nostalgia sempre quando no exterior. Três, em vermelho, indicava novas mensagens. Cliquei e não podia acreditar. Ela escreveu para colocar a culpa do desencontro na amiga e dizer que queria se encontrar. Ela num hotel no centro de Barcelona, e eu trancado para dentro da casa. Não podia recebê-la, e muito menos sair. Não tinha chave e acordar minha amiga, consequentemente seu marido, estava fora de cogitação. Para aumentar o desespero, a espanhola anunciou que iria embora na manhã seguinte. Momento em que utilizei todo meu arsenal persuasivo para demonstrar que podíamos estar prestes a ver um cometa humano chocar com a Terra. Alguns carinhos a mais no léxico e ela topou. Queria, sei que queria… 

Ficou assim combinado: 9 da manhã em frente ao Templo Expiatório da Sagrada Família. Agora só restava dormir para não esperar.

Já é dia, manhã do dia 30 de julio, escorrego pelos carrers até a Sagrada Família. Lá está ela. Sorrisos vão se aproximando. Um tímido hola ganha coro e iniciamos neste momento uma caminhada homérica por todos os cantos de Barcelona. Os pés não reclamavam, a barriga não chiava, os olhos não piscavam, os lábios não secavam, mas o ingrato do tempo passava. Entre besos, esfregões, muito sobe-e-desce do meu pau, ela decidiu ficar aquela noite — agradeço às entidades divinas desde então. Deve ter sido o sanduíche que comemos no parque Ciutadella, foi ali que o meu corpo contou para o dela o desejo de conhecer cada naca de sua carne, cada centímetro quadrado de sua pele, todas as fragrâncias de seu cheiro e todas as variações de seus orgasmos, secos ou molhados. Ela não teve escolha e inventou uma mentira para família, aliás, inventar é arte e como toda arte deve ser transgressora. 

De volta para a casa de minha amiga — pois sabia que o marido tinha ido viajar na mesma manhã que fui encontrar aquela cria dos Pirineus — apresento a zaragozana como a morena prometida. As certezas do coração podem ser volúveis, mas nunca se enganam. Olhava para os pés dela enquanto ela comportadamente se apresentava, e só conseguia imaginar lambendo ela dali até seus seios… Cada instante que minha amiga saía de perto, eu a atacava com o ímpeto de caçador aldeão, que carrega a responsabilidade de alimentar não só a si, como também toda a aldeia. Eu estava ali representando o desejo da humanidade. 

No final da vida, em que a sinceridade brota como erva daninha, e todos já estão conscientes da condição humana de mera peça de um grande e tresloucado quebra-cabeça, o entendimento de que o encaixe entre dois corpos é uma questão de alquimia com ciência com arquitetura com engenharia e um pouquinho de pó de vaga-lume não é mais discutido. Não adianta forçar que não acontece. Acontece apenas quando é. Por isso que digo que os sortudos na vida não são aqueles que acumulam milhões e passam uma vida forçando o encaixe; são aqueles que descobrem o encaixe e anunciam instantaneamente seu armistício sexual. Sei que é preciso muito lençol molhado para ratificar tese tão importante, porém uma vez ratificada assuma-a como lei de vida e não corra o risco de vagar para sempre perdido entre nádegas e seios alienígenas.

Era uma premonição, assoprada no meu ouvido por Afrodite, que precisava ser comprovada.

Minha ansiedade em contar de uma vez por todas como foi que entrei pela primeira vez naquele novo mundo faz com que eu pule o jantar e todas as minhas pequenas tentativas em cada segundo que ficávamos a sós, como um bom trombadinha de plantão, e acelere os passos desta ode anacreôntica.

Então, vamos lá.

Minha amiga anunciou o boa-noite mais esperado de minha vida, que automaticamente jogou meu corpo sobre aquela espanholeta.
Porém, ela pausou meu instinto bestial e anunciou um banho.
Banho? De verdad? Não podia acreditar mas ela sabia já mais do que eu. A releitura filosófica de suas palavras aponta para a desobstrução dos poros e a busca do PH neutro para garantir o coito sem qualquer contaminação terrena. Foi aí que aprendi uma coisa nova, o tal do paladar hormonal. E mudou minha vida, não necessariamente esse novo conceito, mas essa nova mulher. 

Ela entrou no chuveiro e eu fiquei do lado de fora contando as gotas que caíam, mas não sem antes imaginar cada uma delas percorrendo seu corpo. Algumas que apenas bateriam nos seus seios, respeitando aqueles territórios independentes que despertam o interesse de muitas nações soberanas, e iriam diretamente para o chão escorregadio, onde seus lindos pezinhos deveriam deslizar no ladrilho molhado com shampoo. Quando o barulho da água parou, eu saí imediatamente dali e fui para o terraço fingir que estava tranquilo e que nem tinha percebido quanto tempo demorou seu banho. 

Ela apareceu com a pele morena por natureza, bem retocada pelo intenso sol do verão europeu, e apenas uma simples camiseta amarela, de minha propriedade, que tapava até a metade de suas coxas. Nada mais. Os pés descalços, o cabelo molhado e o seu simples dizer de “ahora es tu turno” caiu como um sermão do Padre Antônio Vieira de tão denso. Eu nem respondi e fui para o chuveiro. Tirei a roupa no banheiro e pude notar que aquela ereção insistente permanecia intacta, e que meu pau estava inteiro molhado. Sabia que não podia demorar muito ali dentro. Foram segundos, um recorde mesmo se comparado aos banhos de inverno com água fria.

Saí e lá estava ela na varanda me aguardando, encostada, pelas suas nádegas, na mesa onde jantamos. Sua posição fez com que sua camiseta subisse um pouquinho e eu pude ver algo mais de suas coxas. Como eram deliciosas! Uma linda lua cheia catalã iluminava aquela consagração terrena e jogava pela janela todos os ensinamentos do epicurismo.

A cena era esta: ela e a lua; a lua e ela. Ela com a respiração ofegante e a lua iluminando onde meus passos deveriam seguir para tocar de vez aquele corpo. Obedeci a indicação celeste e caminhei determinado como um kamikaze com as melhores das intenções. Meus lábios voltaram a tocar os dela, só que desta vez meus dedos sentiram sua boceta quente e mojada, e os beijos foram ganhando intensidade até o presente tornar-se a única lógica regente da vida. Ela me empurrou e eu aceitei, sentei numa cadeira e ela caminhou como uma serpente hipnotizadora, deixou a calcinha cair e colocou cada perna em cada lado da cadeira e sentou no meu pau com uma agressiva delicadeza…

A lua se apagou em respeito e eu lembro pouca coisa depois disso.

Ilustração: Hannah Hoch
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