Places

Black mirror — uma imersão na Amazônia pelos reflexos do rio Negro

Por
Adriana Setti
true

Uma viagem pelas águas escuras do gigante que conecta Manaus a comunidades ribeirinhas remotas e aos maiores arquipélagos fluviais do mundo, em meio à floresta amazônica.

Amanhecer no rio Negro, na Amazônia, é o mais perto que se pode chegar de uma experiência lisérgica sem consumir drogas psicodélicas. Na calma das manhãs sem vento, suas águas escuras refletem as árvores gigantes da floresta alagada aos primeiros raios de luz. Espelhado à perfeição nesse black mirror de proporções amazônicas, céu vira rio e rio vira céu. Até que o sol levanta, o vento sopra e a mágica se desfaz. O mundo já não está de ponta-cabeça.

Assim como o crepúsculo, nenhum dia é trivial a bordo do Jacaré Açu, um dos barcos da Expedição Katerre. Abraçar uma sumaúma. Ver bichos-preguiças de perto. Se embrenhar na mata primária. Pescar piranha. Nadar com botos. Pra quem cresceu tendo o Parque Ibirapuera como maior referência de “natureza”, cada encontro com a vida selvagem é uma aventura e tanto. Mas deixar o 5G pra trás, acessar regiões da selva aonde só é possível chegar navegando — por vários dias — e interagir com as pessoas que vivem a realidade da Amazônia é o que faz dessa viagem uma experiência transformadora. “A floresta ocupa quase metade do Brasil”, diz o engenheiro Ruy Tone, sócio-fundador da Katerre. “Não tem como entender o país sem entender a Amazônia”, completa.

“No momento em que o planeta vive o colapso climático, a floresta amazônica é efetivamente o centro do mundo. Ou, pelo menos, é um dos principais centros do mundo. Se não compreendermos isso, não há como enfrentar o desafio do clima”.

Eliane Brum, jornalista, escritora, documentarista a autora de Banzeiro òkòtó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo
 A viagem pelos reflexos no espelho do rio Negro
Rio vira céu, céu vira rio: o mundo de ponta-cabeça | fotos: adriana setti

Navegar sem navegar: Amazônia offline

O primeiro dia é de aclimatação. Zarpando do píer do Hotel Tropical, em Manaus, o barco segue até o Encontro das Águas dos rios Negro, cor de Coca-Cola, e Solimões, com sua aparência de café com leite. A bordo de voadeira — tipo de embarcação que tem formato de canoa e motor de lancha —, dá pra sentir na pele as diferenças de temperatura e textura entre os dois gigantes que, juntos, formam o Amazonas.

À tarde, atracamos no Lago Janauari, onde Josué, nosso guia, dá a primeira demonstração de suas habilidades — ao longo de sete dias, ele se revelaria praticamente um super-herói amazônico. Emitindo sons guturais, ele chama a atenção de um jacaré enorme, que abre caminho entre vitórias-régias e vem ao nosso encontro. Wow! Pra fechar o dia, ao caminhar por uma passarela de madeira em direção ao barco, somos escoltados por um curioso macaco-de-cheiro.

Sob a chuva torrencial típica de fevereiro, início da época de cheia, navegamos rumo aos parques nacionais do Jaú e de Anavilhanas, segundo maior arquipélago fluvial do mundo — depois de Mariuá, também no rio Negro —, com 400 ilhas. Os povoados nas margens vão escasseando. E o sinal do celular não funciona mais.

foto: nareeta martin/unsplash

Gente da Amazônia

Ao longo do caminho, o barco para em várias comunidades ribeirinhas, onde os próprios moradores explicam como é viver na floresta. Entre elas, está um assentamento de povos indígenas do Alto Rio Negro, que fazem uma apresentação de seus costumes tradicionais e nos conduzem por uma trilha na mata.

Entender como a mandioca é processada manualmente, conhecer algumas das ervas medicinais que fazem parte do cotidiano da floresta e encontrar a artesã que produziu o magnífico painel trançado de fibras naturais que forra o teto do barco são outros programas do roteiro, ancorado no turismo comunitário.

Voadeira da Katerre espelhada no rio Negro
 

A cada amanhecer, os ruídos da floresta vão ficando mais familiares | fotos: adriana setti

Você também vai ver in loco como são as escolas onde as crianças dos vilarejos remotos são educadas — e os perrengues que isso supõe. Por essas e outras, a Katerre mantém o projeto Educação Ribeirinha, que vem construindo e reformando 26 escolas em comunidades isoladas do rio Negro, nos arredores de Novo Airão. Conhecer uma delas faz parte do itinerário.

O projeto desses novos centros de ensino, de bioarquitetura, é do Atelier Marko Brajovic, que busca resgatar os signos culturais das populações originárias pra não destoar. Tudo é amplo, ventilado, feito de madeira reaproveitada de árvores caídas da floresta. A estrutura conta com com cozinha, energia solar, internet e acomodação confortável para os professores que, quase sempre, vêm de fora e acabam vivendo de forma precária em algum cantinho da própria escola. “Sustentabilidade, no contexto da Amazônia, está na relação com a comunidade”, diz Ruy, que percorreu o rio Negro pessoalmente pra ouvir as pessoas desses vilarejos e desenvolver o modelo de turismo adotado pela Katerre.

Por dentro do Jacaré Açu

Construído nos moldes das embarcações tradicionais da região, o Jacaré Açu tem três andares. No primeiro, há quatro cabines com beliche. Ali estão, também, a cozinha e um espaço aberto com uma mesa coletiva onde acontecem as (excelentes) refeições — interagir com os outros passageiros, portanto, é parte do jogo, a menos que o barco seja fretado. Já no segundo nível, há uma grande sala de estar climatizada e quatro cabines com cama de casal. Subindo mais um lance de escada chega-se ao solário, equipado com redes e poltronas, que é o espaço mais agradável pra passar as horas de navegação, lançando mão de uma cervejinha gelada do cooler sempre cheio, ou de uma caipirinha preparada no capricho. Todas as refeições, bebidas e passeios estão incluídos no pacote.

As cabines têm ar-condicionado e um banheiro compacto. Não há divisória entre pia e chuveiro — ao tomar banho, fica tudo molhado. Nas acomodações de casal, a cama é pequena, porém confortável, e há algumas estantes pra acomodar as roupas. Com um staff gentil e eficientíssimo que quase iguala o número de passageiros, o Jacaré Açu é um barco de expedições de alto padrão para os parâmetros da Amazônia. Mas, ainda assim, requer um pouco de espírito de aventura e está muito longe de ter o conforto de um iate. O maior luxo da viagem é obra da natureza, em todos os sentidos: devido a seu pH baixo, o rio Negro é um território hostil para os mosquitos, que só aparecem quando atracamos e pisamos em terra firme — ainda assim, em quantidade administrável com um bom repelente.

Diário de bordo

A rotina a bordo começa cedo, geralmente pra ver o nascer do sol, dar um rolê de voadeira e pirar com as paisagens espelhadas na água do rio. Lá pelas 7h30, outro grande momento do dia: o café da manhã. Tapioca com queijo coalho e tucumã, ovos, pães feitos no dia (a bordo!), bolos artesanais de vários sabores, frutas, pão de queijo fresquinho, sucos, banana assada, café passado no capricho. Um primor, assim como as demais refeições, especialmente nos dias em que os pratos principais são os peixes amazônicos, a exemplo dos gloriosos tambaqui e matrinxã.

O térreo do Jacaré Açu, onde acontecem as refeições
Churrasco de peixes amazônicos no rooftop do Jacaré Açu
 Cabine de casal do Jacaré Açu | fotos: adriana setti

Depois do banquete matinal, era hora de sair pro primeiro passeio do dia, sempre em grupos pequenos repartidos entre as três voadeiras que acompanham o barco. A trilha pela floresta até as magníficas grutas do Madadá foi um dos pontos altos da viagem, bem como fazer uma hidromassagem da pesada numa cachoeira do rio Pauini e descobrir as ruínas de Velho Airão, povoado fundado em 1694 que prosperou com o ciclo da borracha, foi abandonado e ficou congelado no tempo. Em alguns pontos, o cenário se parece a uma versão amazônica dos templos de Angkor Wat, no Camboja, engolfados pelas raízes das árvores ao longo do tempo.

No início da época de cheia, deu tanto pra pegar uma praia de areia branquíssima no arquipélago de Anavilhanas (muitas delas desaparecem com a cheia do rio), como pra explorar um igapó (floresta alagada) de canoa tradicional a remo, com macacos-bico saltando de galho em galho sobre nossas cabeças.

Uma semana passa voando. Não dá nem pra se acostumar com escovar os dentes observando cardumes de botos nadarem do lado de fora, ou com as revoadas de araras que, vez ou outra, acompanham o barco. Mas, a cada noite, a sinfonia de barulhos da selva ao redor vai se tornando mais familiar, assim como a ausência do 5G. Na falta dos celulares, sobra tempo pra ouvir Josué contando “causos” da floresta. Sem streaming, as noites são animadas com focagem de pacas e jacarés. Depois de uns dias, fica claro que o detox digital acaba sendo um bônus nessa viagem. Receber a primeira notificação, já perto de Novo Airão, nosso ponto de desembarque, é como acordar de um sonho bonito na base do despertador.

foto de abertura: sitah/divulgacao

abandono-pagina
No Thanks