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20 dias na Floresta Amazônica com os índios Huni Kuin

Por
Ricardo Moreno
Em
26 fevereiro, 2016

Eu concluí rapidamente que o Acre seria meu destino. Foi um insight claro. Uma visão. Ir para a floresta era uma certeza natural.

Já naveguei, batuquei, surfei, me hospedei por trinta dias em um terreiro de Candomblé, já frequentei centros e templos das mais variadas religiões, andei no mato, mergulhei no mar e pulei da cachoeira. Já falei com muito preto velho, já tive medo de alma penada. Amo e já senti dor de amor. Uma imersão na Floresta Amazônica parecia a maior aventura de todas até então.

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Mais certezas e decisões rápidas. Menos dúvidas e reflexões. Assim foram os dias seguintes.

Aos 37 anos, coisas importantes vêm acontecendo na minha vida, como nunca antes. É uma clara passagem de fase. Acomodo certas coisas e boas novas emergem. Devagar, vou me reinventando, percebendo a mim sob novas e mais interessantes perspectivas. É sabedoria tomando forma em minhas ações, além de no pensamento e palavras.

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O contato com a medicina da floresta, pessoas importantes, desaceleração, perdas, choques, auto-consciência sobre eventos recorrentes que se repetem e que nunca tinham ganhado minha atenção. A descoberta de um possível e belo papel para a religião em minha vida. A descoberta inquestionável e indescritível de Deus. O especial e profundo interesse em refletir e sentir sobre meu ego e minha essência — alma e espírito. Este é o caldo e a linha mestra de minha jornada para dentro da maior floresta do planeta — minha imagem e semelhança.

E lá ia eu para o incerto, perigoso e selvagem Acre, onde passaria 20 dias entre o povo Huni Kuin, a “Gente Verdadeira”.

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Aprendi, com o estudo de manifestações populares, que conhecer o “fundamento” é preciso. Eis um motivo elegível para justificar a jornada que segui. A força do fundamento me atraiu até a fronteira entre o Acre e o Peru. Fui atrás do fundamento da humanidade, do fundamento da floresta, das ervas medicinais, da tradição espiritual que me arrebatou poucos meses antes — mas especialmente do meu fundamento. Haveriam de emergir dessa aventura ensinamentos importantes sobre a vida. A abertura era grande e a entrega, irrestrita.

Refleti sobre quem era, deixei ir tudo o que quisesse. Juntei meia dúzia de coisas, das quais poucas foram úteis (e quando úteis, indispensáveis), e parti.

De onde viriam as principais lições? Das pessoas? Da floresta? Do silêncio? Do ócio? Em que afinal seria interessante me concentrar? Ao contrário, decidi simplesmente viver tranquilamente, com a expectativa baixa e a lanterna apagada. Sentir a trilha da mata na noite para exercitar novas possibilidades e novos espaços.

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Desculpe. Ajudar a criar a sua memória em relação aos Huni Kuin é grande responsabilidade da qual atrevo tentar apenas por meio de imagens, não por palavras. Talvez, só por duas: gente verdadeira.

Acordar com o dia e dormir com a noite. Se fartar de alimento puro, plantado e colhido com suor de quem me serviu, e prosear por horas em Hantxa Kuin sem entender uma palavra, decifrando o olhar, a atmosfera, o indizível. Mergulhar nu no igarapé e ouvir meu coração batendo. Dar muita risada com crianças. Seres solares e estrelares. Perceber o sol em tudo e viajar no céu de constelações infinitas. Viajar. Balançar na rede e exercitar a paciência. Falar comigo.

Me emocionar com a pureza e sabedoria de quem ouve a história do assassinato do Rio Doce e responde com olhos grandes, brilhantes de tristeza:

– Onde você mora tem rio?
– Tem.
– E você toma banho nele?
– Não posso porque é sujo.
– Puxa!

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Contemplar a beleza selvagem de todos nós índios.

Contemplar as mulheres, jovens e velhas, sábias. Crianças.

Receber de manhã o abacaxi-presente que perfumou o espaço por dias. Ver e agradecer a Deus pelo pôr do sol da minha janela. Janela?

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Sentir raiva, sentir frio, sentir calor pra cacete, sentir o vento. Sentir mais, pensar quanto menos preciso. Muito menos preciso. Mas lá no Acre não tem nada, disse alguém. No Acre tem tudo. Tem a floresta e a pecuária selvagens. Tem momentos de luz e momentos de sombra. Tem a vida e a complexidade infinita. Eu tenho bunda, você tem bunda, índio tem bunda. A dos índios é mais bronzeada e sarada, pude observar. Aprender-ensinar-aprendendo com meus novos amigos. Viver fora do tempo.

Cheirar rapé.

Sagrada é a medicina Huni Kuin e remédios se descobrem com a ciência do Pajé. Um pajé me disse que não precisa de Google — quando se toma o Nixi Pae com Kawa a planta fala explicando sua força e sua cura. São mais de 350 espécies medicinais catalogadas no livro da cura Huni Kuin. Muito haux para o grande e lendário pajé Ikamuru. Yoshibu, o guarde.

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Sagradas são as plantas da floresta e todas as viagens em que me levaram intensa e profundamente pra dentro e pra fora, num balanço do mar e da copa das árvores, e me trouxe de volta, seguro e fortalecido. Mais ciente sou, mais crente dos limites e potenciais, mais leve e mais poderoso. A vida não acaba, disse o pajé. É sentindo a beira do abismo que percebo com mais força a potência da vida, para o bem e para o mal. Para o bem.

São dois os caminhos – para cima e para baixo. Estamos na ponte sem saber pra onde ela leva. A ponte tem fim? Faz curvas ou vai reta? Vejo névoa.

Vejo sol.

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A grande lição da temporada na floresta foi aprender a não esperar a grande lição. É dar grande proporção também para as pequenas coisas, brincando de escala com a vida, revirando a mesma gaveta mil vezes ou jogando a gaveta fora. Dar a volta na mesma quadra pra fotografar novamente. A grande lição não posso explicar. Senti enquanto voava sobre a floresta-mar. Para onde olhava, havia um mar de vida. Havia seres encantados, mistérios, ancestralidade e cura.

Só não vê quem não quer ou quem tem medo de voar.

E do doce, generoso e confortante Acre voltei. 20 dias e 20 noites depois. Respeito profundo aos seres do Acre, seres do nosso planetinha infinito. A vida não acaba. Viajar e voltar mais forte. Aos 37 anos ganhei presentes valiosos que me protegem e me firmam no bem. Amigos, paisagens, rituais, amores e mistérios.

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Percebi melhor e brinquei de escala com meu ego, me entreguei um pouco mais para minha essência. Minhas ações dizem mais.

Que as forças que nos protegem nos defendam no combate e sejam nosso refúgio contra as maldades. Derramem em nossos corações o espírito da verdadeira e sincera humildade.

Quando eu morrer quero ser plantado com sementes de Sumaúma, a poderosa árvore mãe. Crescer e ver o mundo do alto e do fundo da terra, semear.

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Quando o primeiro índio contemplou a natureza, com espanto exclamou:
– A!

Em seguida, ainda mais arrebatado entoou:
– E!
– Aaaahhh!
– Eeehhhh!

E assim surgiu a sagrada música Huni Kuin:
– Aaaaaaa, Aaaaaaa, Eeeeee, Eeeeee, Aaaaaaa!

Haux!

Sempre, quando surge alguém na aldeia, os Huni Kuins saudam a distância, um a um. Da mesma forma, bem vindos ao meu processo e minha casa.

por Guto de Lima

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