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Tempero brasileiro para a fome do mundo e da humanidade

Por
Eloá Orazem
Em
29 julho, 2016

Não é quem chegou primeiro, é que vai mais longe: Bel Coelho está (re)descobrindo o Brasil, uma fatia por vez. A chef paulistana à frente do Clandestino aprendeu na cozinha o que a gente decora na sala — de aula. Geografia, história e literatura têm gostos e cores que não cabem no binômio verde-e-amarelo do país. Desde que foi eleita chef revelação, aos 25 anos, em 2005, a moça deveras autocrítica tem botado a mão na massa (literalmente) para se tornar uma pessoa e uma profissional melhor — e a gente pode testemunhar essa evolução de perto, no programa Receita de Viagem, exibido no canal TLC. Madura e materna, a cozinha de Bel é para prato fundo e pressa rasa, porque o fogo (ora alto, ora brando — nunca extinto) pede tempo para fazer seu trabalho santo: unir em solda, convertendo-nos todos — ingredientes, pessoas e sentimentos — num só prato; num só corpo, que deve ser servido (sempre) quente e apreciado sem um pingo de moderação.

Ô, Bel, recentemente rolou aquele almoço comunitário com refugiados, como é que foi isso?
Cerca de um ano atrás, uma grande amiga, a Julia, que já tinha contato com a ONG Adus, e ela reuniu um grupo de pessoas para uma espécie de campanha de doação de fraldas. Eu me interessei pelo trabalho desta instituição e procurei saber mais a respeito. Entrei em contato e fui pessoalmente visitar as instalações da ONG. Diante do belo projeto, imediatamente me prontifiquei a fazer algo para arrecadar dinheiro. Discutimos algumas ideias e chegamos a esse almoço.

Mas foi você quem definiu o formato do evento?
Bem, eu tenho experiência em eventos de diferentes portes e propósitos, então sugeri o formato, sim. Pensei que um almoço seria diferente e agradável. Uma amiga minha concordou em ceder sua casa para a causa; enquanto a Adus indicou os refugiados que trabalhariam ali. Fizemos o menu juntos, todo inspirado na comida deles.

A gastronomia deles é bem diferente da nossa, foi preciso mergulhar em alguma pesquisa?
Ah, sim, faz parte do trabalho, né? Pesquisei sobretudo sobre a culinária do Congo, que sabia muito pouco. Por outro lado, a gastronomia síria é muito parecida com a árabe que é um sucesso no Brasil, e a gente conhece bem. Mas apesar da familiaridade, nunca tinha feito nada inspirado nessa cozinha, então foi realmente uma experiência de um grande aprendizado, de muitas maneiras. E acredito que para os refugiados também foi algo prazeroso, porque embora eles já estejam estabelecidos, também estão ajudando muitos outros que precisam.

Você, que já morou no exterior, consegue se identificar com a história deles, de alguma forma?
Absolutamente nada se compara às situações que eles vivem, desde a falta de dinheiro à falta de opções. Acho que a única coisa que seja tangível nessa experiência internacional seja a questão da língua, que é tão assustadora e tão difícil no começo. Morar fora é começar tudo do zero, de novo: conhecer os caminhos, a rotina e a própria vida. E tudo isso requer muita energia e disposição; é cansativo.

Você acha que um bom chef de cozinha precisa, obrigatoriamente, ter vivência internacional?
Hoje temos no Brasil excelentes profissionais, então ir ou ficar é uma questão de escolha pessoal mesmo. Eu, particularmente, acho interessante, porque você enriquece demais viajando e, sobretudo, morando fora. Como a gastronomia é uma em cada lugar, experimentar outras culturas é muito bacana, tanto do ponto de vista pessoal, como do profissional. Mas volto a dizer: não acho que seja requisito obrigatório, mas pode ser um desejo.

Lá na Europa a gente vê tanto restaurante que é quase uma instituição — e não apenas pelas estrelas Michelin. Você acha que há espaço no Brasil para esses “templos” da gastronomia?
Acho que temos muito o que amadurecer como mercado e como profissionais, mas tem gente séria por aqui já fazendo um trabalho que equivale ao que vimos em restaurantes estrelados lá fora. Tem muita coisa boa vindo por aí.

Você acha que há um ponto comum, uma característica que “une” os chefs brasileiros?
Nunca me pus a pensar muito sobre isso, mas é uma ótima questão. Pelo o que tenho observado, acho que agora temos em comum o resgate da culinária tradicional e dos produtos brasileiros. Ainda tem muita coisa a ser feita e descoberta, e a maioria dos profissionais aqui têm esse interesse. Em contrapartida, reconheço que não temos tradição na produção de produtos nativos, e apenas o volume dos restaurante de São Paulo não justifica o investimento — é preciso que essas iguarias voltem a figurar na mesa do brasileiro para que a coisa toda mude.

Bel Coelho/Sai da Sombra

Por conta do programa e da profissão, você teve a chance de viajar o país todo. Das memórias que guardou, tem alguma que é especial?
Várias! Uma que me marcou bastante foi quando tive a oportunidade de colher baru, no Cerrado. Também levo com carinho a lembrança de quando comi tutu na Ilha de Marajó, que foi algo até então inédito pra mim, e bastante surpreendente. Foram viagens enriquecedoras, todas elas, sobretudo porque o programa aborda o lado mais humano na gastronomia: sempre trazemos personagens que fazem a diferença tanto na produção, quanto na cozinha. Hoje acredito mais do que nunca que o produtor é o epicentro da mudança — e digo isso sem querer diminuir o trabalho do chef, mas é preciso ter a humildade de reconhecer que a gastronomia não evolui só com o movimento do cozinheiro.

E dos lugares, qual gostou mais?
Acho que do Cerrado, pelos produtos. Amazônia a gente sabe que é muito rico, mas já foi bem explorada. O sertão parece mais pobre no ponto de vista do produto, mas tem coisas maravilhosas. É difícil escolher um só, mas se tenho que eleger um, então voto no Cerrado, porque é o que eu tenho explorado mais.

Cozinhar é uma bela de uma alquimia, né? O que você anda estudando à beira do fogão?
Temos feitas muitas experiências com defumados ultimamente, usando ervas, cascas de pinhão e outros ingredientes. Estamos apreciando o efeito que a técnica tem em diferentes produtos. Testar outras possibilidades é o primeiro passo para novos resultados — e, no meu caso, a técnica da defumação tem sido uma das mais recorrentes na minha cozinha. A fermentação é outra técnica bastante interessante que me chama atenção, mas não explorei a fundo. Ainda!

Bel Coelho/Sai da Sombra

Está gostando da entrevista? Que tal dar uma pausa pra escutar a playlist que a Bel criou especialmente pra gente com as músicas que são sinônimo de uma vida solar para ela

E você acha que esses tantos programas e reality shows de culinária ajudam ou atrapalham a profissão?
Hummm, acho que talvez cause uma miopia, mas talvez proporcione coisas boas também. É preciso reconhecer que, graças a esses programas, pessoas que não tinham ou não têm contato com a gastronomia ou não valorizam a cultura gastronômica de um país podem agora mudar de ideia. É uma porta que se abre; um universo inteiro a ser explorado. E por muitos desses programas serem levados ao ar em canais de TV aberta, o alcance é enorme, e s possibilidade passam a ser quase infinitas.

Vez ou outra a gente passa por algumas coisas na vida que trazema gente de volta pro chão, sabe? Você já passou por esses de “reality check”?
Difícil falar isso, né? Eu já estou há 20 anos no mercado, e tive dois “booms”. O primeiro aconteceu quando, ainda muito jovem, fui eleita chef revelação, e eu fiquei bastante conhecida em São Paulo — e naquela época não tinha programa de gastronomia e nem nada. Acho que naquele momento talvez o sucesso tenha subido à cabeça. Não que eu tenha me tornado uma pessoa arrogante ou prepotente, mas eu acho que aquilo veio com um peso. É bem difícil de explicar. Eu sentia a responsabilidade de fazer algo relevante; temia não ser boa, mas, ao mesmo tempo, era reconhecida. Eu saía em revista toda semana. Aí eu fui para Londres abrir um restaurante, que não vingou. Quer dizer, o restaurante abriu depois, mas não comigo, com outro chef. O cara era um pilantra. Aquilo foi muito difícil para mim. Eu estava há oito anos no mercado e só colecionava experiências positivas, estava mal acostumada. Mas isso acabou sendo muito importante na minha carreira. Não que eu ache que as pessoas precisem sofrer para aprender, mas reconheço que aquele sofrimento em particular foi necessário no momento.

E ainda existe muita gente má intencionada nesse setor, Bel?
Ah, sem dúvida, mas acho que tem em todo e qualquer mercado. Na gastronomia tem muito amador, eu diria, tanto como dono de restaurante, como cozinheiro — gente que não se forma, sabe? O Brasil, diferente dos Estados Unidos nesse sentido, é mais amador, porque lá o mercado não perdoa — ele te engole. Também é preciso ponderar que eu sempre fui muito autocrítica — aos 25 anos eu achava que não era merecedora de tudo aquilo ainda.

Desde os seus 16 anos você já sabia que queria ser chef, então você está nesse universo de sabores há muito tempo. Sua relação com a comida mudou ao longo dos anos?
Mudou completamente. Tem coisas que eu mantenho, que são heranças da minha infância mesmo, como o amor à boa mesa. Mas no início eu sabia o caminho; não sabia que ia querer fazer uma culinária brasileira — achei que iria mais para gastronomia francesa. Vá lá, eu sempre soube que usaria produtos brasileiros, mas nunca me imaginei trabalhando em uma cozinha de raiz, até porque eu não conhecia essa arte. Sou paulistana, então não tive uma relação muito íntima com a comida regional, com o que é genuinamente brasileiro. Isso foi se tornando forte depois, com contato mesmo com o país. Antes eu tinha uma visão equivocada sobre o que era o Brasil. Agora, se olharmos sob uma nova ótica, o fato de eu não ser descendente de índio, de não ter vivido no nordeste e outras coisas mais, fez com que eu não tivesse um laço afetivo com nenhum desses lugares, e isso me permitiu viajar a todas regiões sem preconceito  — foi tudo bastante equilibrado. Eu tenho liberdade para transitar entre todos. A minha história cosmopolita me permitiu olhar o Brasil como um todo, e eu adoro.

E todo esse crescimento da culinária local deve ecoar lá fora. Eles nos olham com mais respeito e ate curiosidade?
Acho que sim, mas falta um caminho. A gente tem muito para descobrir e reconhecer ainda. Primeiro precisamos valorizar a prata da casa, e só depois exportar e internacionalizar.

Quando você vai planejar suas férias, você leva em consideração os aspectos gastronômicos do destino?
Nossa, muito! Sempre vou aos restaurantes e mercados locais, olhando, cheirando e provando novidades, porque a minha vida pessoal já misturou muito com a profissional nesse sentido. Acho que até por isso não tenho o hábito de ficar em resort e repetindo o mesmo sabor.

Graças ao Clandestino, você adotou um novo esquema de trabalho, um bem diferente da rotina dos restaurantes. Como tem sido isso?
Maravilhoso, para dizer o mínimo. Nunca fui tão feliz profissionalmente. Tanto que eu nem penso em abrir outro restaurante. Não me entenda errado: eu ainda trabalho muito, porque faço uma porção de coisas, mas agora eu não fico mais acordada até tão tarde. E ter essa autonomia toda é incrível.

Você, que já é mãe, está esperando agora seu segundo filho. A maternidade mudou a sua forma de se relacionar com a gastronomia?
Mudou totalmente. Na casa dos meus pais, tinha de tudo — aquela coisa do bem comer que eu falei… Mas nesse “de tudo” entra para a conta muitas besteiras: tinha fígado, mas tinha Nescau também. Aqui em casa já não entra besteira ou industrializados, eu fiz e faço todas as papinhas.

O Brasil é um país muito solar, você acha que isso impacta ou impactou na nossa culinária tradicional?
Acho que sim, nunca pensei muito nisso… Acho que os luares quentes tem comidas quentes — vide nosso vatapá, feijoada e outras tantas iguarias. Tem uma teoria que diz que é para igualar a temperatura do corpo, por dentro e por fora. Não sei se concordo com essa teoria, mas acho que vale uma reflexão. No mais, não tenho dúvida que o clima faz toda a diferença na produção, e isso certamente afeta positivamente a qualidade do prato. O Brasil é privilegiado nesse sentido, com toda sua biodiversidade.

Você, pessoalmente, é fã do sol?
Ah, eu adoro um sol, faz toda a diferença. Mas é importante não confundir sol com calor: eu adoro o frio, mas gosto do sol. Eu desassocio uma coisa da outra, entende?

E qual um prato tipicamente brasileiro que você indicaria pra um belo dia de verão?
Hum, o prato brasileiro que é a cara do verão acho que manjubinha frita com limão ou lula à dorê. São mais aperitivos do que pratos, mas acho que tem tudo a ver com o Brasil e com o verão.

Bel Coelho/Sai da Sombra

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